devotudoaocinema.com.br - "Curtindo a Vida Adoidado", de John Hughes

John Hughes – O Poeta da Juventude

Ele começou na década de setenta escrevendo para a revista “National Lampoon”, uma ousada e criativa colagem de textos subversivos e escrachados, que era febre nos Estados Unidos na época. Em uma das capas mais famosas, um revólver apontava para a cabeça de um cachorro e a manchete dizia: “Se você não comprar esta revista, iremos matar este cachorro!” O empreendimento cresceu e invadiu os cinemas no início da década de oitenta e Hughes se encarregou de realizar o roteiro do projeto.

No Brasil, o filme chamou-se “Férias Frustradas” (National Lampoon’s Vacation), trazendo no elenco a presença carismática do humorista Chevy Chase, contando ainda com a participação especial de um jovem John Candy. O filme foi um grande sucesso no mundo todo, rendendo três continuações com o mesmo elenco, as duas primeiras (“Férias Frustradas na Europa” e “Férias Frustradas de Natal”) com roteiro de Hughes.

Em 1984 dirigiu seu primeiro projeto, o hoje bastante cultuado “Gatinhas e Gatões” (Sixteen Candles), que tornou sua protagonista Molly Ringwald um fenômeno da época. Além de conseguir traduzir as emoções dos adolescentes, Hughes primou também por se manter fiel ao seu grupo de atores, sempre os escalando em seus filmes posteriores. No ano seguinte realizou o que considero sua melhor criação: “O Clube dos Cinco” (The Breakfast Club). Na história, cinco estudantes ginasiais encontram-se detidos e tendo que passar o sábado juntos na sala de aula, tendo que escrever uma redação redimindo-os do erro.

O toque de genialidade de Hughes foi fazer dos cinco jovens, símbolos e estereótipos de cinco características comuns e universais da idade. O rebelde violento, o esportista valentão, a menina mimada, a esquisita e o nerd. Eles terão que se confrontar e descobrir que não são tão diferentes como imaginavam. Mas foi com o hit instantâneo “Curtindo a Vida Adoidado” (Ferris Bueller’s Day Off) que o diretor entrou para a história do gênero, alçando em sua companhia um jovem Matthew Broderick no papel símbolo de uma década e de uma geração, o inconsequente e anárquico Ferris Bueller.

A decisão de Hughes de filmar Broderick falando para a câmera, quebrando a quarta parede, fazia com que nos sentíssemos parte integrante das cenas, tornando a caracterização de Broderick mais simpática.

Com seu prematuro falecimento, o mundo perdeu um símbolo dos anos oitenta, um gênio que com sua sensibilidade acentuada, conseguia entender a juventude em todas as suas angústias, frustrações e desejos, e os fazia se identificar na tela do cinema com exatidão de detalhes e humor. Nada mais conveniente que terminar esse texto com uma passagem do filme “O Clube dos Cinco”, que traduz com exatidão a real mensagem de John Hughes para todos os adultos, tentando fazê-los entender melhor o universo complexo dos adolescentes:

Querido Sr. Vernon, nós aceitamos o fato de sacrificar nosso sábado na detenção por seja lá o que tenhamos feito de errado. Mas nós achamos que você é louco por fazer a gente escrever uma redação dizendo quem nós achamos que somos. Com o que você se importa? Você nos vê como quer… Do jeito mais simples e conveniente. Você nos vê como um cérebro, um atleta, um problema, uma princesa e um criminoso. Estou certo? Era como a gente também se via às sete horas desta manhã. Nós estávamos alienados.”

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Curtindo a Vida Adoidado (Ferris Bueller’s Day Off – 1986)

O adolescente Ferris Bueller decide sair da rotina e engana seus pais fingindo estar doente para poder fugir da aula. Ele convence sua namorada, Sloane, e seu melhor amigo, Cameron, a se juntar a ele no passeio até Chicago, usando a Ferrari do pai de Cameron. No entanto, o diretor da escola sabe que Ferris está mentindo e vai atrás dele.

Impossível expressar aqui a sensação que nós sentíamos quando nos jogávamos na cama (ou no chão, no sofá), com a cabeça cheia de preocupações escolares (no meu caso, como iria resistir às provocações de alguns colegas de classe no dia seguinte) e com um copo de Pepsi na mão, enquanto que a outra se alternava entre um saco fedorento de Cheetos ou os aromaticamente mais agradáveis pacotinhos de biscoitos wafer de nome “Lanches do Fofão”.

O mundo todo à minha frente e eu torcia para fazer dezoito anos, com a mesma força que hoje torço para voltar aos vinte. Na pequena televisão de dezesseis polegadas, dependendo do meu humor, eu me alternava entre “Sessão da Tarde” (Globo) e “Cinema em Casa” (SBT).

“Curtindo a Vida Adoidado” era sinônimo de comoção nacional. Adolescentes faltavam suas aulas vespertinas, enquanto eu que estudava de manhã, corria para casa a tempo de acompanhar o início. E que início!

Ferris Bueller (Matthew Broderick) colocando seu plano audacioso em andamento, enquanto seus pais se preocupavam com sua intensa febre. E ele falava com a gente, muito antes de eu entender o que era “quebra da quarta parede”, eu já achava o máximo aquela interatividade. Nós então virávamos cúmplices daquele plano e eu podia jurar que sentia o vento bater no meu cabelo, quando na companhia daquele trio (Broderick, Mia Sara e Alan Ruck) acelerava com aquela Ferrari vermelha pela estrada.

Assistir a “Sessão da Tarde” quando criança era uma experiência sensorial. A gente sentia que compartilhava daquele momento com toda nossa turma de escola (e todo o Brasil), então torcíamos para sermos identificáveis naquele contexto. Não importava que eu tivesse sete anos, mas eu estava ali dançando Twist and Shout com o personagem principal.

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Quando a cena mostrava rapidamente a imagem da Mia Sara olhando orgulhosa para o seu namorado, nas nossas cabeças não era a atriz, mas sim, aquela garota por quem éramos apaixonados (muitas vezes sem coragem de avisá-las na vida real e torcendo para que, por alguma mágica, ela assistisse ao filme e pensasse: “e não é que ele lembra o…”). Aquela era uma época sem internet, tv a cabo, MSN, Google, em que nossa imaginação nos bastava.

Mesmo tendo assistido ao filme várias vezes nos anos seguintes, nunca mais senti aquela mesma euforia (que tentei expressar aqui), somente uma bela nostalgia que chega a apertar o coração. Por este motivo a dublagem é tão importante em nossas vidas.

A realidade é que foi com a voz do Nizo Neto que eu conheci Ferris Bueller, e é somente com esta voz que se abre em minha mente um portal dimensional que me leva novamente, por alguns momentos, para aquele tempo e espaço, em que, por milésimos de segundo, consigo sentir os aromas daqueles biscoitos que nem existem mais.

O filme acaba e o protagonista nos pede para irmos embora, retiro o DVD, guardo-o em minha coleção consciente de que em breve nos reencontraremos, pois até agora não descobriram máquina do tempo mais eficiente que a sétima arte.



Viva você também este sonho...

4 COMENTÁRIOS

  1. “Por este motivo a dublagem é tão importante em nossas vidas. Foi com a voz do Nizo Neto que eu conheci Ferris Bueller, e é somente com esta voz que se abre em minha mente um portal dimensional que me leva novamente, por alguns momentos, para aquele tempo e espaço, onde, por milésimos de segundo [..]”
    Você me traduziu neste trecho!!! Como é bom que exista um crítico como você, que valoriza a dublagem brasileira, lindo de ler!!! É bem isso, é uma memória afetiva linda, esse filme é o máximo e a dublagem maravilhosa!!! Não teria esse encantamento todo, sem ela!!!

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