Morangos Silvestres (Smultronstället – 1957)
Parem e pensem por um momento em como o ato de assistir a um filme e o ato físico de sonhar são semelhantes. Ambos operam sua magia no escuro, projetando durante cerca de noventa minutos (o mesmo tempo que dura a fase REM do sono), fantasias que se tornam realidade, enquanto estamos nesta espécie de estado hipnótico.
Você fica passivo, incapaz de modificar o que é apresentado, numa fuga voluntária da rotineira vida comum. Eu considero “Morangos Silvestres” o sonho mais belo do mestre Ingmar Bergman.
O filme nos apresenta o médico e professor aposentado: Isaak Borg (Victor Sjostrom, que dirigiu o clássico mudo: “A Carruagem Fantasma” de 1921), um homem que dedicou sua vida toda à carreira na medicina.
No crepúsculo de sua existência, sentindo que a desperdiçou em ambições vazias, ele descobre que será homenageado com um título honorário na universidade de sua estimada cidade natal. Borg começa então a relembrar os vários estágios de sua longa jornada humana.
Sonhos e devaneios conduzem-no a um mergulho no inconsciente, fazendo-o perceber que seu rude temperamento (sintomático de fuga de traumas passados, como um escudo contra o sofrimento) tornava cada vez mais difícil seu relacionamento com seus familiares e amigos, impossibilitando que ele ficasse de bem consigo mesmo.
A sua intensa solidão, decorrente deste processo psicologicamente autodestrutivo, faz com que ele sinta a proximidade do anjo da finitude. Ele decide então repensar suas escolhas durante a longa viagem de carro que faz até seu objetivo (o que torna a obra um autêntico “road movie”).
Os elementos que são apresentados no segundo ato, os três caroneiros (uma jovem e dois rapazes), representam obstáculos emocionais que serão enfrentados no desbravamento mental do protagonista.
A jovem que chega a afirmar não conhecer nada pior que envelhecer se assemelha fisicamente ao seu primeiro amor, vivida pela mesma atriz. Os dois jovens que vivem em constante argumentação, colocando em confronto a ciência e a religião, reverberam dúvidas nunca apaziguadas no código moral de Berg.
Um dos momentos mais lindos no roteiro pode ser tido como um sonho dentro de um sonho. Estas experiências lúdicas, que seriam inspiração para Woody Allen no excelente: “Desconstruindo Harry”, revelam os desejos e medos reprimidos, fazendo com que cada pequeno fragmento do quebra-cabeça elucidado represente um maior entendimento sobre a complexa condição humana.
Ele retorna à sua juventude (mas mantém-se fisicamente envelhecido) e reencontra seu primeiro grande amor: Sara (Bibi Andersson), bela e jovial como estava da última vez que a viu, décadas atrás.
Aos seus olhos, ele ainda se mantém como era outrora, gentil e sensível. Pelos olhos dela, conhecemos o verdadeiro Berg, aquele indivíduo perdido em meio a décadas de rancor e autocomiseração.
E, no belo desfecho, após rever seus pais num relance onírico de um passado distante, ao fechar os olhos em sua cama, o homem enfim encontra sentido para sua existência.
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Sua perspectiva, seu crivo da obra, Octávio Caruso, dão-lhe sabor antecipado e não fogem (pelo contrário conduzem) à esta obra de arte. Muito grata.