Artigo

Sábio Silêncio (uma viagem no tempo aos primórdios do cinema) – Parte 1

Após uma noite insone, eu continuo tentando acreditar naquela realidade tão intensa que vivi no dia anterior, porém, meu intelecto recusa-se a aceitar o jogo. Como grande parte dos cinéfilos, eu sempre me referi ao cinema mudo como uma relíquia perdida no passado, um necessário meio para se alcançar a arte que hoje existe. Ela nunca havia me tocado. Minhas lágrimas secaram, meus nervos ainda buscavam se controlar.

Quem imaginaria que uma sessão de poucos minutos, um trem chegando à estação, iria me emocionar tanto? Teria algo a ver com o entusiasmo de meus seletos colegas? Não importava, pois a única coisa que desejava era poder voltar para aquela época, pelo menos mais uma vez. Para a minha sorte, naquela noite, o Rolls Royce novamente me convidaria a entrar.

Quem me recebeu foi Gaston Méliès, que sorridente durante a viagem me contou sobre a experiência que seu irmão iria realizar naquela tarde, avisando que desde o ano anterior (foi então que percebi que nessa realidade alternativa, o tempo não respeitava as leis naturais) só se falava sobre essa invenção em Montreuil-Sur-Bois (propriedade da família
Méliès). Chegando ao meu destino, bendisse minha cultura geral, pois nunca imaginaria que um dos prazeres de George Méliès era comunicar-se com seus amigos mais próximos trocando trechos de poemas ou poesias. Notando a minha presença, ele recordou-se da chuva que castigava aquela noite mágica, apertou minha mão e declamou:

– “Il pleure dans mon coeur (Chora no meu coração)

Comme il pleut sur la ville (Como chove na cidade)

Quelle est cette langueur (Qual é esta languidez)

Qui pénètre mon coeur?” (Que penetra meu coração?)

Retribuindo o sorriso e nervoso por minha memória faltar exatamente naquele momento, consegui com esforço lembrar de qual poeta ele estava se referindo, já que não me recordava de nenhum trecho específico, respondendo-o com mais formalidade do que deveria:

– Longa vida ao ditoso Paul Verlaine.

Gaston pigarreou desconfortável e seu irmão franziu o cenho. Nervoso, procurei manter o sorriso no rosto, que logo desabou ao escutar que Verlaine, o “príncipe dos poetas” havia falecido alguns meses antes. Inconformado com minha gafe, pousei minhas mãos nos ombros de Méliès e afirmei, com solene seriedade, que poetas como Verlaine nunca morreriam. Emocionado, meu anfitrião convidou-me a acompanhá-lo até o lado de fora de sua propriedade, onde, em algumas horas, eu seria testemunha ocular da primeira filmagem do velho mágico, que viria a ser conhecida como: “Une Partie de Cartes” (Uma Partida de Cartas).

Diferente das experimentações dos irmãos Lumière, havia maior movimentação, com a constante intromissão de uma senhora adorável, porém, incrivelmente introvertida, assim como uma interação animada entre os integrantes da mesa. Tentei manter a calma, enquanto posicionava-me sentado logo atrás do cinematógrafo construído pelo próprio Georges, com a ajuda do engenheiro Lucien Reulos, posicionado fixamente a poucos metros da mesa, Georges no centro e Gaston à minha direita.

Após a filmagem, Gaston veio em minha direção e questionou minha opinião sobre aquela brincadeira. Surpreso, percebi que era desta forma que o irmão de Méliès lidava com aquele invento. Será que aquele cortês francês imaginaria que aquela brincadeira seria tão valorizada mais de um século depois? Provavelmente ele descobriria o potencial daquela “brincadeira”, quando poucos anos depois, mais precisamente em 1902, foi para Nova York, a pedido de Georges, e iniciou a distribuição dos filmes de seu irmão na “Star Film Company”, criada na tentativa de garantir os direitos autorais das obras, já que alguns
mal-intencionados distribuidores realizavam cópias de seus projetos, visando
alcançarem o mesmo sucesso.

Continua…

Octavio Caruso

Viva você também este sonho...

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