Poucos anos haviam se passado, mas eu quase não reconheci o homem que caminhava em minha direção com um largo sorriso no rosto, enquanto procurava dar atenção a todos que o prestigiavam na alegre feira. Fisicamente continuava o mesmo, porém, aquele ar despreocupado e bonachão de outrora havia sido substituído por o que parecia ser uma tensão constante. Georges Méliès agia agora como um industrial, um homem de negócios atarefado, ainda que se mantivesse cortês. Lembrou-se de mim, mas não do meu nome.
Sabendo ser esta a minha última oportunidade de estar ao lado dele, eu busco conseguir alguns minutos de sua atenção, antes da aguardada projeção de “Viagem à Lua”. Aproveitando-me do lapso de memória dele, eu recrio os eventos passados, fazendo-me passar por um funcionário do “Le Petit Journal”. Animado, Georges apoia-se em meu braço e me convida a acompanhá-lo.
Questionado sobre não haver sido comunicada minha presença, eu demonstro minha desenvoltura, agradecendo sempre minha inestimável cultura geral, comentando sobre a “Concours des Voitures sans Chevaux” (primeira corrida de carruagem sem cavalos, organizada pelo jornal quase uma década antes) e mentindo a respeito de minha relação de amizade com o escritor Émile Gaboriau, que colaborou com o jornal até sua morte em 1873. Tendo ganhado a confiança dele, eu me sento na cadeira que ele me indica e preparo-me para iniciar a importante conversa, devidamente captada pelo gravador instalado secretamente no bolso interno de meu paletó. Seguem alguns trechos selecionados dentre treze minutos envoltos em fumaça de cigarro:
– A fotografia mostra um mundo estático, mas com essa invenção podemos registrar em movimento aqueles que amamos, captando gestos e expressões que antes residiam apenas em nossa memória, vencendo a morte… Esse filme que você verá hoje é meu maior investimento, foram mais de 10.000 francos gastos em quatro meses de preparação. Não estou disposto a deixar que outros oportunistas aproveitem-se das minhas ideias – por várias vezes ele cita o nome de Edwin S. Porter e sua obra: “The Finish of Bridget McKeen”, que havia sido apresentado no ano anterior – e copiando meu estilo – Porter “homenageava” Méliès, utilizando seu truque de fotografia em vários de seus filmes – Eu criei o truque como uma ferramenta útil para levar o encantamento das mágicas de palco para este novo público.
Ele nasceu por acidente – neste momento ele orgulhoso demonstra por meio de gestos a essência da “mágica”, pegando com uma mão um cigarro e com a outra sua cigarreira. Ele fecha a mão com o cigarro enquanto mostra a cigarreira vazia na outra mão – Neste momento eu mando cortar a filmagem e me mantenho na mesma posição, só que deixo cair o cigarro da minha mão enquanto um colega insere o mesmo cigarro na cigarreira. A filmagem continua e você fica surpreso ao ver que na minha mão não existe nada.
Mas aí é que vem a melhor parte! – ele se empolga e gestualiza tudo como se estivesse se apresentando para uma plateia – Você acredita que o cigarro foi parar na cigarreira, mas usando o mesmo processo eu faço aparecer uma pequena explosão de fumaça, que quando se esvai mostra estar no lugar da cigarreira um enorme cigarro. Eu surpreendo o público, levando-o a crer estar assistindo algo comum, como Robert-Houdin –um de seus ídolos na mágica – Com essa invenção fascinante, sou capaz de chocar e até aterrorizar o público, colocando demônios saindo de profundezas abissais e até homens caminhando na lua, como provarei a você hoje – apenas em lembrar a forma ingênua com que ele me disse isso, um sorriso brota em meu rosto.
Alguém se aproxima e fala com Méliès, que se levanta e informa que a projeção irá começar. Incrível perceber a tensão em seus movimentos, enquanto caminha e sai de meu campo de visão. Eu lentamente desligo o pequeno gravador em meu bolso, coloco meu chapéu e inicio meu trajeto até a realização de mais um sonho impossível. Algo brilha no chão e chama minha atenção segundos antes de sair: a cigarreira de meu amigo, esquecida como se nenhum valor tivesse. Dividido entre o desejo compreensível de guardar este inestimável souvenir e o critério ético que sempre me valeu, eu decido mandar às favas aquela dúvida moral e discretamente guardar a cigarreira no outro bolso interno de meu paletó.
A providência nunca falha. O filme começa a ser projetado, enquanto o próprio Méliès muito animado se encarrega de narrá-lo para o público.
Ao final, os aplausos pareciam não terminar nunca, enquanto meu amigo fazia reverência e cumprimentava um a um, os presentes. Como em um sonho, eu percebo a presença o Rolls Royce que já me aguarda à distância. Ele está no meio do povo e eu não quero incomodá-lo, então dou meia-volta e lentamente me dirijo ao meu destino. Após três passos incertos eu percebo o erro que estou cometendo, retorno meu olhar para ele, que acena de longe me chamando. Méliès me abraça orgulhoso e pergunta minha opinião. As únicas palavras que consigo proferir são: Bravo, mon ami!. A minha mão então tateia até encontrar a cigarreira, entregando-a ao dono.
Ele esboça surpresa e verdadeira emoção por meu gesto, brincando, dizendo que não sabe o que lhe acontece, pois parece que os espíritos estão a caçoar dele, sumindo com suas coisas e fazendo-as reaparecer em outro lugar. Promete então me agradecer pela minha honestidade no seu próximo filme: “Onde quer que você esteja, irá ver e saber que é uma homenagem a você e seu ato valoroso”. No caminho de volta, muito emocionado, eu me recordo do tema do filme seguinte: “Spiritisme Abracadabrant” (1903), em que ele interpreta um homem que percebe desesperado a presença de espíritos que movem as coisas de lugar e roubam seu chapéu.
Eu procurava guardar uma lembrança daquele encontro e acabei tornando-me a inspiração de uma obra do meu ídolo.
Continua…
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