Artigo

Sábio Silêncio (uma viagem no tempo aos primórdios do cinema) – Parte 6

Bastaram alguns segundos para que eu entendesse o fascínio que aquela jovem suscitava nos homens poderosos da época. Mary Pickford exalava sensualidade, como se soubesse a forma de conseguir qualquer coisa que ambicionasse, dominava a arte da sedução e chegava a ser vulgar em seu olhar. Em um império onde os homens tomavam as decisões, ela vencia-os fazendo-os crer que realmente possuíam algum controle, enquanto sutilmente os controlava.

Não era a mais bela, pessoalmente poderia passar por uma simples garota interiorana, porém havia conquistado a admiração e o respeito de seus colegas machistas. Ela entrava em um ambiente e os homens estendiam um tapete vermelho, quem sabe até dispusessem-se a oferecer a ela seus corpos para que atravessasse por sobre eles. Exatamente por este motivo, a minha indiferença chocou-a tanto. Com a cigarrilha na mão, ela aguardava minha atitude, porém eu estava muito nervoso com a situação e mantive-me calado, com um tímido sorriso. A gargalhada dela surpreendeu alguns que estavam próximos, inclusive Aitken e Griffith, que se entreolharam intrigados com aquela reação. Foi quando ela lhes disse em tom jocoso:

Temos aqui um jovem talhado para o trabalho, querido Griffith. Indiferente e mudo. – provavelmente foi alguma indireta sobre alguém que ambos conheciam, mas eu não soube identificar, tampouco investiria tempo nesta questão, bastante incomodado com a pequena gafe.

Aitken franziu o cenho e veio em minha direção com um olhar inquisidor, deixando Griffith a conversar com a jovem, que daquele momento em diante estava disposta a ignorar-me friamente. Consciente de haver ferido seu ego, eu decidi entrar no jogo proposto por ela. Com um sorriso acolhedor, eu emendei:

Querida Gladys, regozijo-me em tê-la enganado com atuação tão medíocre.

Griffith sorria para Mary, que me olhava com curiosidade renovada. Chamando-a por seu nome verdadeiro, eu demonstrava conhecê-la em sua essência. A jovem então modificou totalmente sua postura (como se houvesse regredido alguns anos, voltando a ser uma insegura adolescente), como se o ato de reconhecê-la em seu barro original, antes de moldar-se com suas próprias mãos naquela figura quase mítica, houvesse operado nela uma temporária “reinicialização de sistema”.

Minha simples ação impulsiva, fazendo uso de meus conhecimentos de psicologia, garantiu-me alguns preciosos minutos de atenção, que eu não estava disposto a desperdiçar. Beijando-lhe a mão, induzi-a a acompanhar-me para um espaço mais reservado. Sutilmente acionando o pequeno gravador instalado no bolso interno de seu paletó, eu iniciei a breve conversa:

Você não deve se lembrar de mim, mas tive o prazer de conhecê-la em uma reunião organizada por David Belasco, logo após a estreia da peça: The Warrens of Virginia, por volta de 1907.

Tantos anos se passaram, que realmente estaria mentindo para o senhor se dissesse que me recordo de seu rosto. Você é amigo do David? – aquela lembrança animou-a bastante, levando-a a constantemente apoiar-se em meu braço, demonstrando fisicamente o conforto que sentia com minha presença.

Muito amigo, fui eu quem o aconselhou a sempre utilizar preto em seu vestuário. – eu afirmei isso em tom de brincadeira, levando-a a soltar uma gostosa gargalhada. Sabendo que ele era informalmente reconhecido como “O Bispo da Broadway”, por sempre se vestir em tons escuros, imaginei que utilizar uma anedota corajosamente salientando este aspecto, provaria a ela que estava sendo genuíno em suas afirmações.

Eu preciso dar atenção ao outro David (Griffith) responsável por minha carreira, você sabe como ele é carente (risos). Mas foi ótimo revê-lo. – enquanto ela se afastava lentamente, eu a chamei e pedi:

Como eu lhe disse, sou ator. Trabalhei alguns anos no vaudeville, mas meu sonho é fazer cinema. Seria um incômodo para você, recomendar-me ao Griffith? – ela simplesmente enlaçou o braço dela no meu, encaminhando-me ao centro do salão, onde Griffith e Aitken continuavam conversando animadamente.

***

O produtor teatral, diretor e autor David Belasco, foi o responsável pela criação do nome artístico de Gladys Marie Smith: Mary Pickford. A jovem participou de duas peças produzidas por ele: “The Warrens of Virginia” (1907) e “A Good Little Devil” (1913). Ela mantinha com ele uma relação de amizade e gratidão, que se estendeu até a morte do empresário, no ano de 1931. A influência de Belasco em sua arte é enorme, tendo sido o
responsável por incutir no teatro americano novas camadas de naturalismo, com cenários ricamente detalhados, atores que encenavam (por exemplo, uma cena em uma cozinha) cozinhando alimentos e a utilização de essências aromáticas (colocadas na ventilação) únicas, para diferentes cenas em suas peças.

***

Pickford soltou o meu braço e abraçou Griffith. A feição do homem demonstrava que ele escutava algo, provavelmente a recomendação da jovem ao seu ouvido. Eu comecei a ficar nervoso, pois temia pela reação do veterano diretor. Ela sorriu para mim, enquanto repetia o gesto com Aitken, que não esboçou nenhuma reação ao contato. O anfitrião desejou-a uma linda noite e agradeceu a presença dela, que desapareceu entre os ombros que se amontoavam no salão. Griffith então depositou a mão em meu ombro e aproximando os lábios do meu ouvido, sussurrou em um leve tom de ameaça:

Seu charme não funcionará comigo, rapaz embusteiro. – eu não sabia como, mas o diretor havia percebido meu truque.

Continua…

Octavio Caruso

Viva você também este sonho...

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