Críticas

A MARAVILHOSA trilogia “Antes do Amanhecer”, de Richard Linklater

Os trilhos de um trem em movimento, primeira imagem de “Antes do Amanhecer” (Before Sunrise – 1995), sugerem que estamos testemunhando uma jornada que já se iniciou. Linhas que se cruzam, logo antes do corte, sugerindo que o inesperado faz parte desta experiência. Como na vida, nunca sabemos quem iremos conhecer ou o quanto esta nova pessoa irá influenciar no destino desta fascinante viagem.

O diretor Richard Linklater utilizou como inspiração um breve encontro romântico que teve aos 29 anos, com uma jovem chamada Amy, que conheceu em uma loja de brinquedos.

Um romance que durou apenas a eternidade de uma madrugada. Na estreia do primeiro filme, Richard sonhava com a possibilidade de Amy prestigiar o evento, mas ela havia falecido semanas antes do início das filmagens, em um acidente de moto. Sua musa inspiradora, aquela estranha com quem compartilhou algumas horas de felicidade e ternura, jamais veria sua declaração de amor.

Celine (Julie Delpy) está sentada no trem, tranquilamente lendo, até se assustar com o início de uma briga do casal sentado ao seu lado. Caso aquele casal não tivesse se desentendido, ela não teria conhecido Jesse (Ethan Hawke). Caso aquele casal não tivesse se levantado e caminhado com pressa para o fundo do trem, eles não teriam trocado um primeiro olhar. O inesperado havia transformado completamente a vida dos dois jovens.

Ela estava lendo o filósofo Georges Bataille, enquanto ele lia a autobiografia do ator Klaus Kinski. O roteiro já nos mostra nestes detalhes que são dois jovens que se recusam a abraçar o comodismo ideológico, em contínua busca por algo que não conseguem identificar; questionadores levemente frustrados (como todos os pensadores) à espera de algo que os surpreenda, que os motive.

Quando Jesse a convida para o acompanhar, ela não pensa duas vezes, como se aquele encontro fosse uma necessidade, uma promessa irrecusável de aventura.

Somente então os dois começam a vasculhar por pistas sobre o que existe por trás da máscara do sorriso, num instigante jogo de flerte que se estende pelo resto da viagem. A câmera continua captando os rostos, mesmo após o término das falas, para sutilmente captar o elemento mais importante: a reação de cada um à recepção do outro, após expor sua opinião, revelar sua alma.

A expressão no rosto de Celine, enquanto Jesse conta uma longa anedota sobre sua avó – este singelo momento capturado pela câmera – alcança um romantismo maior que muitos filmes inteiros, produzidos no gênero pela indústria norte-americana. Quando o jovem chega ao seu destino, sabemos tão bem quanto ele que não existe maneira de seguir em frente e ignorar aquele encontro.

Ela resiste por uns segundos antes de descer do trem, mas decide continuar valorizando o inesperado. Você olha para o relógio e percebe que naqueles 16 minutos de filme, você já viu mais conteúdo e mais veracidade do que em todas as populares adaptações de Nicholas Sparks. E o casal ainda nem sabia seus nomes.

Em “Antes do Pôr-do-Sol” (Before Sunset – 2004), o diretor insere no início uma cena que ele ansiava que ocorresse com ele na estreia do primeiro filme. Contrariando as mais esperançosas expectativas, Celine aparece no evento de lançamento do livro de Jesse, uma obra inspirada pelo encontro dos dois, ocorrido cerca de 10 anos antes.

O que emociona neste filme coerentemente mais sóbrio (são duas pessoas mais maduras, ao invés dos jovens de outrora) é a sutileza do roteiro, com personagens que dizem mais nos momentos de silêncio, como quando Celine intenciona acarinhar os cabelos de Jesse, mas respeitosamente desiste ao perceber que ele sentiria o toque de seus dedos (ele agora é um homem casado e com um filho).

O tempo agiu sobre seus corpos, mas bastou trocarem algumas palavras para que se sentissem novamente naquele trem.

Após algumas brincadeiras, o papo vai ficando mais sério, levando-nos (junto com eles) a refletir sobre as oportunidades perdidas e o que deixamos para trás ao envelhecermos. Ambos interpretando personagens, pois ele vive um relacionamento desgastado e ela finge respeitar o compromisso dele, evitando em vários momentos o seu flerte, negando seus sentimentos. Nos dois, um latente medo de que aquele amor idealizado simbolize algo inatingível, uma jovialidade e um desejo pela aventura, que agora lhes soa distante.

Aquela noite mágica, que inspirou um livro (no caso dele) e uma canção (no caso dela), deveria ser preservada apenas como o símbolo daquela juventude que não existe mais? Haverá coragem suficiente nos dois, mais maduros e compromissados, capaz de fazê-los abraçar novamente o inesperado?

Jesse e Celine querem reaver o tempo perdido, mas na vida real não existem roteiristas que inventem confortáveis resoluções “Deus Ex Machina”, nem acordes de violino que nos avisem que a pessoa certa está ao nosso lado. O tempo, elemento essencial na excelente trilogia de Linklater, está sempre contra os personagens.

Richard Linklater cria uma das melhores trilogias da história do cinema, uma prova de que o romance pode ser trabalhado sem clichês e objetivando satisfazer igualmente homens e mulheres. É extremamente difícil elaborar um texto sem revelar o mote da obra, um ponto de essencial importância na compreensão da excelência da proposta de seu idealizador. Os fãs querem entrar na sessão ignorando completamente o que ocorreu entre o desfecho do filme anterior e o início deste.

O que posso dizer é que o leitmotiv de “Antes da Meia-Noite” (Before Midnight – 2013) rima (inclusive imageticamente, fechando um círculo) perfeitamente com os primeiros minutos de “Antes do Amanhecer”, mais especificamente aqueles que antecedem o primeiro encontro de Celine e Jesse no trem.

Esta forma encontrada pelo diretor, criativamente subvertendo as expectativas, conduz a trama a novas possibilidades, explorando o amadurecimento dos personagens.

A opção de emoldurá-los desta vez na Grécia, com suas ruínas e histórico teatral, não poderia ser mais ideologicamente coerente.

Enquanto os dois primeiros lidavam com o jogo de flerte e o romantismo idealizado da juventude, neste ocorre o choque de realidade tão poucas vezes abordado pela indústria (mais interessada em acordes de violino que incitem lágrimas), com os personagens propondo uma discussão racional e anti-romântica sobre o desgaste emocional nas relações humanas.

O que o público recebe é tão corajoso, que me remeteu a alguns trabalhos no tema realizados por Ingmar Bergman. Aqueles diálogos divertidos, em que um tentava sutilmente impressionar o outro, são substituídos por uma argumentação séria e profunda, extremamente bem escrita. O tempo, elemento essencial nos filmes anteriores, continua atuando contra os personagens, porém, numa inversão sensacional, desta feita dando-lhes total liberdade.

Você se surpreende em dados momentos por perceber que aquele relacionamento cinematográfico que você sonhava que ocorresse após o fade out, acabou se tornando um realista espelho de nossas fragilidades, como um conto de fadas que se torna assustadoramente real.

Octavio Caruso

Viva você também este sonho...

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  • Que bom que você tenha oportunidade de ver tantos bons filmes e consiga socializá-los conosco, mesmo em forma de crítica, diga-se de passagem, sempre tão bem feitas. Esta, especialmente, está maravilhosa. Parabéns E continue sempre assim.

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