Como meu ídolo Woody Allen, pensei em iniciar esse texto com um monólogo. Não demorou muito para que, tal qual aquele raio que acerta um pobre infeliz no meio de uma
metrópole, me apercebesse da total inadequação de um monólogo como forma eficiente de iniciar um texto. Aliás, como é triste a sina de alguém que recebe dez mil volts no meio da testa, acreditando, não na hora, mas com sorte alguns dias depois em uma mesa de hospital, estar destinado entre sete bilhões de pessoas, a ser aquele miserável que irá adicionar mais essa página dolorida em suas histórias de fim de ano. O raio poderia muito bem ter acertado o metro de chão ao seu lado ou a árvore mais próxima, mas, não, ele tinha que cair precisamente em sua cabeça.
Caso houvesse ocorrido nas páginas de “Odisseia”, muito provavelmente seria tido como algum castigo perpetrado por Zeus, o que seria o mesmo que dizer que a vítima não obtinha o apreço de Palas Atena, sempre tão disposta a interceder pelos mortais, porém, no mundo moderno pode ser considerado, pura e simplesmente, um azar dos infernos. Esquecendo-me por um momento de raios e voltando ao tema, devo dizer que outro elemento fascinante no humor de Allen é o uso das metáforas. Inesquecível é a que ele utiliza ao final de “Annie Hall” (“Noivo Neurótico, Noiva Nervosa”, de 1977), sobre o homem que, preocupado com a sanidade mental de seu irmão, procura um médico e questiona: “Doutor, meu irmão enlouqueceu. Ele acredita ser uma galinha”. O doutor curioso pergunta a razão que o impede de interná-lo, no que o homem responde: “Mas é que eu preciso dos ovos.” Allen então explica que muitos relacionamentos são completamente irracionais, porém, não os terminamos porque “precisamos dos ovos”.
Analisar Woody é como olharmos no espelho e vermos refletido aquele “eu” que tememos expor. Normalmente a versão de seu “eu” mais utilizada é a que espera sair sorridente de uma festa, para passar a viagem inteira de retorno criticando, desde o tapete da sala de estar até o estado precário da peruca da avó de nosso anfitrião. Woody não. Ele provavelmente passaria metade da festa criando elegantes anedotas que salientam a horrorosa cor do tapete e a aparência estranha da avó. O pior é que ele faria rir até mesmo o anfitrião e a avó. Sem máscaras, ele expõe as fragilidades da sociedade e as próprias. Ele é o tipo de cara que se encontrasse aquele pobre miserável do início do texto em meio a uma chuva torrencial, entregaria a ele, solícito, um guarda-chuva com uma seta, em tom vermelho vibrante, apontando para baixo, desenhado em sua cúpula.
Nesse especial abordarei os projetos em que Allen teve total controle criativo, deixando de lado filmes como “What’s New, Pussycat?” e “Cassino Royale”, que utilizaram o jovem talento como um peão no enorme tabuleiro dos grandes estúdios. Começarei então com o ousado e curioso “O Que há, Tigresa?”.
O Que há, Tigresa? (What’s up, Tiger Lilly? – 1966)
ANTES, VALE RESSALTAR QUE TODO AQUELE MONÓLOGO INICIAL É FICTÍCIO, O POBRE MISERÁVEL ATINGIDO POR UM RAIO EM PLENA METRÓPOLE E SUA RESPECTIVA PEÇA TEATRAL: “UM RAIO? LOGO HOJE?” (“UM ESPETÁCULO ELETRIZANTE!”*****- CRÍTICO ANÔNIMO), FORAM APENAS UTILIZADOS DE FORMA SIMBÓLICA E NÃO LUCRATIVA.
Allen demonstra já em seu primeiro trabalho a sua tremenda cara de pau, no bom sentido, se é que existe um, ousando pegar uma sátira japonesa dos filmes de espionagem, em ascensão à época, graças ao James Bond de Sean Connery, e redublar. Logo nas primeiras cenas, vemos o diretor sentado em um respeitável escritório, explicando que ele havia sido convocado por Hollywood a fazer o filme de espionagem definitivo. Quando questionado sobre o ineditismo de tal façanha, a redublagem, ele responde que o mesmo já havia
ocorrido outras vezes, como em “E o Vento Levou”. Bastam três minutos para o jovem cineasta mostrar seu talento. Hoje em dia é comum vermos esse artifício ser utilizado em programas de televisão, filmes, como o horrível “Kung-Pow – O Mestre da Kung-Fu-são”, e até sucessos do Youtube, como “Bátima – Feira da Fruta”, mas na década de sessenta ele foi o pioneiro dessa arte extremamente duvidosa.
A trama é o que menos importa nessa criativa experiência, com mais acertos que erros. Várias piadas ficaram datadas, porém, alguns momentos refletem com exatidão o estilo de humor que tornaria Allen um símbolo em sua área. Como em uma cena no topo de um edifício, onde o protagonista avisa que aquele era o momento onde obrigatoriamente o diretor e sua esposa passariam à frente da câmera. Logo após um casal passar, o protagonista cochicha: “Esse egomaníaco”. Existe também a cena impagável onde o capanga, que está prestes a torturar os heróis, entoa um sofrido blues (“Ninguém sabe os
problemas que passei…”). Aquele momento em que o vilão agradece à sua parceira, após
uma noite de amor, por ela ter lhe livrado da sinusite. Puro Allen, em estado embrionário.
Na metade do filme, vemos novamente o diretor. Ao ser questionado sobre o confuso roteiro e a possibilidade de explicar ao público desorientado o que está ocorrendo na trama, ele responde apenas: “Não”, e o filme retorna da cena onde havia parado. Allen volta para finalizar a obra, durante os créditos mais inteligentes que eu já vi. (exagero, concordo) Deitado em um sofá, ele saboreia lentamente uma maçã, enquanto uma bela asiática realiza um strip-tease. Os letreiros ao lado informam: “Caso você esteja perdendo tempo lendo isso, ao invés de olhar para a mulher, você precisa urgentemente procurar um psiquiatra ou um bom oftalmologista”.
Claro que existem várias outras cenas hilárias, mas se eu as contasse, fugiria da minha intenção principal que é fazer com que você assista, ou reveja. Porém, antes de sair de casa para alugar o DVD, veja na janela se não está chovendo muito.
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