Christopher e Jonathan Nolan acertam logo nos primeiros dez minutos de “Batman Begins” (2005), mostrando que o Bruce Wayne de Christian Bale é na realidade um homem consumido pelo ódio, um criminoso em potencial, cujo heroísmo consiste no seu ato diário de disciplinar sua fúria, direcionando-a para outros criminosos que não compartilham de sua índole.
O medo que inspira não nasce do símbolo, por mais que ele assim acredite conscientemente, ou do morcego que seu traje personifica, mas de sua atitude. Os bandidos que ele enfrenta são homens perdidos em seu próprio caos pessoal, Batman não representa um farol de inspiração para o bem, como Superman, mas o para-raios que atrai todo este caos urbano para si próprio e o organiza.
Um personagem fadado à destruição, pois não existe possibilidade de redenção para alguém como ele. Uma resistente gota de óleo em um oceano, que cedo ou tarde será consumida, mas não sem antes modificar, para melhor ou pior, o seu ambiente.
Um dos sintomas mais claros de que a intenção de Nolan era intrinsecamente ligada à riqueza psicológica comportamental do personagem está na escolha do vilão Ra’s Al Ghul, vivido por Liam Neeson, como elemento fundamental de criação do mito e motivo condutor da trilogia. Visualmente desinteressante, o personagem normalmente seria rejeitado por qualquer cineasta que tocasse o material sem a paixão necessária.
Ra’s admira o criminoso latente em Wayne, e procura então moldá-lo aos seus interesses. Ao contrário da função formulaica em que sempre é inserido, inclusive nos quadrinhos, o mordomo Alfred (Michael Caine) aparece como aquele que é responsável por manter o jovem íntegro, como uma relíquia nostálgica de sua infância despreocupada, o último elo com um período em que ele recebia plena atenção e amor de seus pais.
Impondo-se perante o medo, abraçando seu ódio e potencializando-o para o que considerava um bem maior, Wayne torna-se um símbolo. A única forma de envolver o público nos anseios deste homem angustiado: traduzi-lo da forma mais verossímil possível.
A ambição de Nolan com sua trilogia era mais profunda do que apenas mostrar um órfão que busca vingança vestido de morcego. Ele questiona o papel de uma sociedade devastada que vive vítima da impunidade.
Batman é a criação natural desta sociedade corrompida, nascido de cada grito por ajuda nos becos, alimentado por cada gota de sangue que verte de um inocente. Quando Gotham City estiver limpa de toda sujeira, o cavaleiro das trevas não terá função. O único elemento capaz de perturbar a formação de um ideal é o caos. Em “O Cavaleiro das Trevas” (The Dark Knight – 2008), o Coringa (Heath Ledger) representa o desapego a qualquer civilidade, a bestialidade sem censura ou códigos éticos.
Fisicamente, ele não constitui um perigo para o Batman, mas sua anarquia pode tornar o herói uma caricatura aos olhos do povo. Desacreditado, o símbolo perde todo seu poder. Exatamente o que o vilão faz com Harvey Dent (Aaron Eckhart), que era visto como o último bastião da justiça em sua cidade. O símbolo já havia se tornado inspiração entre os cidadãos, que patrulhavam as ruas vestindo o manto que representava para eles aquele ideal. Como o gerente do banco que surpreende o vilão com seu revide no início do segundo filme.
Tanto o Coringa quanto o Espantalho (Cillian Murphy) necessitam essencialmente que as suas vítimas sintam medo, portanto a inspiração que o morcego incita no povo é algo a ser extirpado brutalmente. Alfred temia desde o início esse panorama, pois sabia que seria a única resposta possível a um grito tão puro de rebeldia.
A escalada teatralizada era iminente e impossível de ser contida. A questão nunca foi se o Batman estaria preparado para a revolução, mas sim, por quanto tempo ele resistiria.
E a inserção do vilão Bane (Tom Hardy), em “O Cavaleiro das Trevas Ressurge” (The Dark Knight Rises – 2012), foi ideologicamente coerente por representar um tipo de antagonismo físico que o herói não havia enfrentado.
Uma chance narrativa para o personagem demonstrar sua resiliência e seu poder como símbolo, afetando diretamente o jovem idealista vivido por Joseph Gordon-Levitt. Bane impera no caos que estabelece ao retirar a legitimidade da força policial, conduzindo a trama ao fantástico terceiro ato.
No épico desfecho, sublimando a morte após seu maior ato público de coragem, com senso de legado, o morcego se torna eterno aos olhos do povo, que sempre irá ignorar os rostos por trás da máscara, enquanto o indivíduo que ousou acender o fogo da revolução consegue enfim seu merecido descanso.
O conceito de enfrentar a teatralidade do mal com MAIS teatralidade, a simbologia entendida perfeitamente por Christopher Nolan.
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