Diário
13 de Janeiro – 1920 – 18:30
Pickfair já estava começando a parecer pequena, com poucos espaços onde alguém pudesse verdadeiramente ficar afastado dos grupos que conversavam animadamente. Como era literalmente um homem fora do meu tempo, estava evitando interagir, preferindo apenas observar e registrar. Sempre que Mary Pickford atravessava meu campo de visão, ela olhava zombeteiramente e piscava, sabendo que eu devia estar me sentindo em um parque de diversões.
Eu percebi que seria impossível abordar todos aqueles que eu havia imaginado, mas me foquei inicialmente no senhor de cabelos brancos que parecia bastante cansado, um dos poucos que se mantinham sentados no grande sofá central, segurando ternamente a mão de uma senhora que transbordava elegância. Tentando manter a calma, aguardei vagar um espaço próximo a eles no sofá e me sentei, proferindo o clássico “quebra-gelo”: “Bela festa, não?” O máximo que consegui em resposta foi um tímido sorriso da mulher. Para minha sorte, alguns segundos depois, ele iniciou em tom baixo uma breve conversa com
ela. Como imaginei, ela era Mina Miller, segunda esposa do homem que estava quase cochilando ao meu lado, Thomas Edison.
Eu tentei atrair a atenção dele de todas as formas, mas o homem estava visivelmente abatido e sem humor para uma noite festiva. Acredito que ele estava torcendo para passar o tempo e poder voltar logo para sua casa. Arrisquei alto e usei a estratégia que não iria falhar. Eu me virei na direção dele e, após respirar fundo, iniciei:
– Sr. Edison, acreditaria que eu sou um viajante do tempo?
A esposa sorriu, mas ele, como imaginei, parecia ter acordado de um longo transe, chegando a se ajustar no sofá.
– Meu jovem, você está se sentindo bem?
Defendi o olhar mais sério que consegui, continuando a falar lentamente, estratégia que sempre torna qualquer disparate mais respeitável.
– Eu sei que o senhor está desperto para a transcendência da vida humana. Você está se comunicando nesse exato momento com um homem de outro mundo… – na ausência de expressão melhor, acho que confundi ainda mais meu novo amigo.
Ele trocou um olhar de choque com a esposa, mas havia nele uma fagulha de alegria quase infantil. Eu não sabia que ele já estava conduzindo secretamente uma pesquisa sobre a possibilidade de uma máquina que estabelecesse comunicação com os mortos. Alguns meses depois ele iria falar sobre isso publicamente. Prefiro pensar que tive alguma influência nesse sentido. Ele esqueceu completamente a festa e se virou para mim:
– Ninguém sabe disso, não pode ser uma coincidência. Você está habitando esse corpo por um tempo limitado?
Nesse momento percebi que havia me complicado bastante, mas pelo menos eu tinha conseguido atrair a atenção dele. Sem pensar duas vezes, respondi com ar solene:
– Foi o que eu consegui para hoje… – segurei o riso o máximo que pude, mas não aguentei.
Ele soltou uma gargalhada que atraiu a atenção dos mais próximos, apoiando a mão em meu ombro com o carinho de um amigo de infância. Edison, o “feiticeiro de Menlo
Park” que inventou a lâmpada elétrica, era um homem sério e introvertido, mas extremamente bem-humorado e gentil. Emendei sem dar tempo dele sequer respirar:
– Mas eu sou mesmo um viajante do tempo.
O homem gargalhou mais alto ainda, como imaginei que ele faria. O plano estava dando certo. Agora eu poderia abordar o assunto mais importante da noite, sua inestimável contribuição para a Sétima Arte.
***
O conceito da projeção de imagens em movimento era um dos muitos interesses de Edison. Ele procurava um instrumento que “estivesse para o olho, assim como o fonógrafo estava para o ouvido”. Em 1889, com a ajuda do fotógrafo William Dickson, desenvolveu o Cinetoscópio, um instrumento que permitia ver individualmente imagens em movimento através de um orifício na parte superior. Aquela invenção atraia cada vez mais interessados, então a produção teve que suprir aquela demanda.
Em 1892 ele construiu o primeiro estúdio de cinema, o “Black Maria”, que se movia de acordo com a deslocação do sol e continha um telhado removível para possibilitar a entrada da luz. Os filmes eram basicamente breves números de vaudeville, como dançarinas e boxeadores cômicos. Não seguiam linhas narrativas, eles documentavam atividades triviais, como eventos esportivos ou a saída de operários de uma fábrica. Tudo mudou quando Edwin S. Porter foi contratado por Edison em 1900, começando então a utilizar aquela ferramenta para contar histórias.
Em 1903, ele dirigiria o faroeste embrionário “O Grande Roubo do Trem”, colocando um dos personagens atirando em direção à plateia, ousadia que chegava a causar pavor em uma época mais ingênua. O sucesso dessa nova forma de narrativa visual levou à criação dos nickelodeons, pequenos teatros que exibiam esses filmes quase que ininterruptamente. O
cidadão pagava um trocado, em qualquer hora do dia, para se distrair por alguns minutos. Nascia então o cinema.
***
Mary Pickford parecia feliz ao ver nosso entrosamento, quando se aproximou do sofá. Edison se levantou e deu um longo beijo na mão da anfitriã, antes de apontar o dedo em minha direção.
– Esse rapaz devia trabalhar com vocês, faz tempo que não rio tanto.
Mary piscou novamente para mim, antes de responder:
– Nesse ritmo, ele acabará nos dirigindo.
Ela beijou Mina e seguiu falando com os convidados, enquanto voltava a me sentar e, sem que ninguém percebesse, ligava o gravador. Ele foi o primeiro a falar, parecendo intoxicado pela passagem daquela mulher, que seguia com os olhos.
– Não existe atriz melhor que Pickford, um encanto.
– Por falar nisso, eu gostaria de saber sua opinião sobre esses filmes, essa Arte da imagem em movimento que você… – percebi que ele não prestava atenção em uma palavra do que eu estava dizendo, ainda muito compenetrado na figura de Pickford que desaparecia num oceano de ombros. – Sr. Edison, que fantástica atriz é a Pickford, não?
– Fantástica, meu rapaz. Você disse muito bem.
– E sobre os filmes, o que você sente ao ver… – percebi então que ele havia escutado muito bem minha pergunta anterior.
– Eu não fiz nada. Você devia perguntar isso ao Edmund Kuhn, William Dickson, que dirigiram os meus produtos. Meu interesse era nas máquinas individuais, mas como pode ver, pensei muito pequeno. Achei que não haveria público interessado nesses filmes. Quando vi “O Nascimento de uma Nação”, entendi que estava diante de algo muito maior do que tudo que havia imaginado. – por algum motivo que não compreendi, senti que aquele assunto havia irritado ele, então preferi abortar a tentativa.
– Mas como é linda a Pickford, não é?
Edison checou se a sua esposa não estava prestando atenção, virou-se para mim e, com o rosto próximo ao meu, afirmou sorridente:
– Demais, meu inteligente rapaz.
Continua…
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