A Canção da Estrada (Pather Panchali – 1955)
No final da década de 40, o cineasta francês Jean Renoir visitou a Índia para gravar “O Rio Sagrado”. Na ocasião, conheceu Satyajit Ray, um jovem apaixonado por cinema e que trabalhava na época como ilustrador de capas de livros. Ray ajudou o diretor a encontrar várias locações para o filme e aproveitou para falar a ele sobre sua vontade de tornar-se um cineasta. Renoir o incentivou a continuar sonhando e ao regressar ao seu país, deixou para trás um homem modificado.
O jovem indiano havia ilustrado uma versão do livro “Pather Panchali” e se identificava com a trajetória de vida do pequeno protagonista Apu. Foi enviado para Londres a trabalho e nos três meses que lá ficou, viu noventa e nove filmes, entre eles o neo-realista italiano “Ladrões de Bicicleta”, que serviu como motivação para que ele decidisse investir em suas ideias e realizar uma adaptação cinematográfica de sua obra literária favorita. Muitas das imagens criadas para o livro acabaram sendo transpostas para o filme.
O filme foi feito com uma verba irrisória. Sua equipe técnica e artística nunca havia trabalhado nesta área, as gravações tiveram que ser interrompidas várias vezes por falta de dinheiro e o filme só conseguiu ser completado com a ajuda do governo indiano. Todo o esforço e dedicação valeram à pena, pois foi um enorme êxito de público e crítica no mundo todo. O lendário cineasta americano John Houston deu o empurrão necessário à confiança do indiano, quando filmava na Índia e a pedidos do próprio, viu um trecho do filme, que ainda não havia sido completado, e fez questão de notificar ao Museu de Arte Moderna de Nova York que um talento imensurável se mostrava no horizonte.
Ele recebeu um prêmio especial no prestigiado Festival de Cannes em 1956 e continua sendo respeitado até hoje. Ray desenvolve no filme um trabalho lírico e singelo sobre a infância e a união familiar. A história simples se passa num pequeno vilarejo no interior da Índia, onde uma mulher cuida sozinha de sua filha adolescente enquanto seu marido passa a maior parte do tempo longe de casa, procurando sem muito sucesso, realizar seus sonhos profissionais. O pequeno Apu nasce no meio do fogo cruzado entre três mulheres distintas: uma mãe digna, que se recusa a aceitar ajuda nos momentos de dificuldade, sua irmã sonhadora e sua tia à beira da finitude. A trama é irrelevante, deixando em primeiro plano um relato realista do dia a dia desta pequena família, que sobrevive à pobreza, expectativas frustradas e tragédias naturais com uma força de espírito incomum.
Vários momentos ficam guardados na memória, como a celebrada cena em que Apu e sua irmã correm para ver a passagem de um trem, evento que, de tão fascinante e mágico, por representar uma nova perspectiva de realidade num futuro distante, acaba ocasionando a reconciliação entre os irmãos, que haviam discutido por causa de um pedaço de papel. As imagens que sempre me recordo ao falar deste filme são as que envolvem a bela relação entre a filha adolescente e sua amada tia, como quando a jovem rouba frutas de pomares alheios para levar para a velha senhora, que sempre a recebe com um largo sorriso sem dentes.
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