Críticas

“Atirem no Pianista”, de François Truffaut

Atirem no Pianista (Tirez Sur Le Pianiste – 1960)

Charlie Kohler (Charles Aznavour), o pianista do bistrô de Plyne, é triste, distraído, discreto. A garçonete, Léna (Marie Dubois), está apaixonada por Charlie. Ela sabe que ele se chama Edouard Saroyan, que é um grande pianista e que foi casado.

A recepção da crítica da época foi morna com essa segunda incursão de François Truffaut, o que, analisando o nível alto de qualidade da obra, reflete o tremendo impacto de “Os Incompreendidos”, e, por conseguinte, a expectativa que se formou sobre o passo seguinte de um jovem que prometia uma revolução na linguagem cinematográfica.

O que os intelectuais franceses não compreenderam, foi que, ao contrário de Godard, mais interessado em revolucionar a estética, quebrar as estruturas e começar do zero, o enfant terrible não escondia sua paixão devotada ao cinema, com profundo respeito pelos alicerces que o sustentavam.

A opção consciente de filmar uma adaptação de um livro de David Goodis, um autor de romances policiais, trabalhado como uma carinhosa homenagem ao gênero noir americano, uma de suas grandes influências, desagradou aqueles que esperavam uma atitude cínica de desconstrução.

Truffaut era um cineasta que não pensava em satisfazer somente o próprio umbigo, ele fazia filmes para quem amava essa arte tanto quanto ele. Coerente com as atitudes de sua contraparte crítica, evitava se escravizar em um molde confortável e subjetivo de anarquia, algo que, por exemplo, Godard sempre abraçou desesperadamente. Antes de tudo, ele amava todas as vertentes do cinema. E, exatamente por isso, suas obras sobreviveram tão bem ao teste do tempo, o que não se pode dizer de grande parte dos seus colegas de Nouvelle Vague.

O que muitos não perceberam na época é que, por baixo da camada narrativa aparentemente convencional, o diretor inseriu grandes tiradas ousadas, sempre pendendo para a comédia. O desejo de desconstrução está lá, porém, não da forma sisuda e fria de um Antonioni ou um Bresson. Quando, em uma breve cena, o personagem de Charles Aznavour, deitado na cama, cobre com o lençol o corpo da linda Michèle Mercier, dizendo que “no cinema é assim”, Truffaut realiza uma crítica muito mais eficiente que filmes inteiros de seus colegas mais mimados pelos intelectuais.

Analise atentamente a maneira como ele filma as cenas com os sequestradores, chegando a flertar deliciosamente até com o humor pastelão, tirando toda a tensão que se espera delas, subvertendo totalmente a expectativa do público.

Ele exercita esse jogo desde a primeira sequência, com o personagem que corre pelas ruas, até se chocar com um poste, símbolo do acaso, conduzindo a cena para algo totalmente inesperado. O roteiro corajosamente não entrega o elemento da ação, identidade do romance policial, tampouco o existencialismo típico dos personagens da Nouvelle Vague, requisito que o diretor parecia prever que se tornaria uma zona de conforto, já que ninguém na trama, especialmente o protagonista, parece se levar a sério.

Ele pratica o experimentalismo de forma adorável, sem soar chato e arrastado. Nós conseguimos enxergar o crítico desafiador presente, por trás das câmeras, de mãos dadas com o cinéfilo apaixonado, do início ao impressionante desfecho, que me remete ao lirismo das melhores obras de D.W. Griffith.

Octavio Caruso

Viva você também este sonho...

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