Críticas

“Um Filme Para Nick”, de Wim Wenders

Um Filme Para Nick (Lightning Over Water – 1980)

O realizador Nicholas Ray encontra-se às portas da finitude e tem como última vontade a realização de um filme sobre a odisseia de um pintor adoentado que viaja até a China em busca da cura para a sua doença. Em seu auxílio, vai o amigo Wim Wenders, que se debatia com a finalização de outro projeto pessoal: “Hammett”. Juntos, discutem a forma de pôr as suas ideias em prática, mas se apercebem que o estado de saúde de Ray não lhes permitirá muita margem de manobra.

Eu me recordo que tomei conhecimento dessa obra com o boom inicial da internet, dias inteiros para conseguir baixar apenas um arquivo, já que não encontrava de forma alguma em meus garimpos pelas videolocadoras. Na época, com muita alegria, vi a possibilidade tangível de me aprofundar nas filmografias completas dos grandes diretores mundiais, algo impossível na era do VHS. E esse filme teve um impacto muito forte, tanto que preferi me afastar; somente o revi agora, para escrever esse texto.

Nicholas Ray, uma carreira composta de temas corajosos, um lobo solitário que injetou uma carga de densidade dramática pouco usual, em variados gêneros, na Hollywood dos anos cinquenta. Até mesmo no épico bíblico “Rei dos Reis”, projeto dos sonhos do produtor Samuel Bronston, ele conseguiu deixar sua marca autoral, elemento que ainda mantém o filme relevante nos dias de hoje.

Enfrentando a mortalidade desse realizador, em estágio terminal de câncer no pulmão, o amigo Wim Wenders, ao invés de lamentar a inevitável perda que viria em breve, encara o evento por uma ótica mais digna, alternando ficção, com diálogos improvisados, e um registro documental, por vezes filmado com Betacam, com muita granulação e um som ruim, o que simbolicamente foi pensado pela dupla como o câncer do filme. Com a saúde dele se deteriorando rapidamente, os médicos aconselharam a equipe a seguir filmando para que ele não entrasse em depressão.

E a última sequência antes do epílogo, com os dois amigos conversando no quarto do hospital, emociona pela tremenda força de caráter de Ray, já com a mente desorientada, lutando para continuar de pé até o gongo final. Gosto muito de dois momentos, a breve recriação livre de “Rei Lear” e, especialmente, a cena em que Wenders toma o lugar de Ray, na cama do hospital. O segundo, com seu tapa-olho dos áureos dias, um misto de figura paterna/mestre/autor; o desfecho devastador, em que os dois discutem sobre a necessidade de terminar a cena e gritar: “Corta!”. Wenders, como um filho temendo ficar desamparado, rejeita a ação, pede para ele não verbalizar o comando definitivo.

“Olhei para o meu rosto, e o que vi? Não uma pedra de granito como identidade. Azul apagado, pele machucada, lábios enrugados e tristeza, mas sim, uma vontade louca de reconhecer e aceitar o rosto de minha mãe.”

O filme não é sobre como lidar com a finitude, mas sim, sobre a própria finitude, protagonista impiedosa e incontrolável. Ela tira a direção das mãos de Ray, após cerca de uma semana de trabalho, entregando para Wenders o desafio de conduzir a obra. Nas primeiras sequências, podemos perceber que se trata de Ray interpretando o pintor, porém, poucas cenas depois, nós enxergamos claramente os remendos criados de última hora, enxertando a dura realidade na composição do que havia se tornado a última grande batalha de um guerreiro, alguém que não demonstrou medo algum de se expor em seus momentos de maior fragilidade.

É triste, mas há uma beleza nesse desprendimento emocional, uma noção transcendental de que o cinema, veículo de expressão do artista por toda sua vida adulta, também seria responsável por conduzir ele em seus ritos finais.

Octavio Caruso

Viva você também este sonho...

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