Neste especial “Woody Allen”, começo sempre com um texto cômico, no estilo do homenageado, um dos meus ídolos nesta arte.
Recado de divulgação em versão antisaramaguiana:
Há agora uma ruptura godardiana nesse especial celebrado regionalmente por seu organizado sistema cronológico motivada pelo lançamento em DVD dessa obra até então inédita no nosso mercado de home vídeo pela distribuidora “Classicline” em lançamento exclusivo numa parceria com a Livraria Cultura.
Nunca um ponto final foi tão aguardado nesse mundo sem vírgulas. A questão é que, devido a uma análise ponderada sobre a atual situação cultural de nossa nação, constatei a acachapante irrelevância de qualquer senso, inclusive, do bom senso e, especialmente, do senso de ridículo. O filho que talvez eu tenha no futuro, caso haja futuro para o Brasil, coerentemente desrespeitando o senso de tempo e espaço, olhou bem fundo em meus olhos hoje e me perguntou se as mulheres sapiens irão evoluir até se tornarem as senhorinhas sapiens, e, caso isso eventualmente ocorra, será que elas continuarão assistindo ao especial de final de ano do Roberto Carlos?
Eu, com meus abrangentes conhecimentos científicos, apoiei minha mão em seus ombros, sorri de canto de boca, espirrei, pois estou gripado; busquei inspiração por um segundo no pai da ciência: Noé, o famoso velhinho da Arca; então aguardei mais alguns segundos, para disfarçar que estava recebendo instruções de um ponto eletrônico, consegui me desviar de duas balas perdidas em nosso país pacífico, e respondi com garbo e elegância: Não sei.
Comunicado urgente:
O maior sucesso de público na Bienal do Livro, o fenômeno literário brasileiro do momento, a jovem vlogger, atriz canastrona e DJ, Kaplévstokra, acaba de avisar ao seu criterioso grupo de fãs pré-adolescentes que, logo depois de postar várias selfies patrocinadas em seu instagram, desmaiou no evento por alguns minutos. A razão? Ela conheceu pessoalmente sua cantora preferida, Nani Moratto, compositora teen dos hits com prazo de validade absurdamente curto: “Nossa, perdi meu celular!” e “(Como pode) Fui trocada por um Playstation”. Seguranças no local informam que, nos estandes próximos, autores talentosos e que efetivamente escreveram cada linha de seus livros, disputavam uma partida de “Paciência” com as moscas.
O garoto, aparentando inexplicável desorientação, virou as costas, ligou a televisão para assistir ao mais famoso programa de entrevistas do horário nobre, na maior emissora de televisão nacional, onde, pelos últimos quinze minutos, o apresentador celebrava a vida e a obra de um jovem e desconhecido artista do cenário hip-hop tupiniquim, que, entre outras peculiaridades, afirmou sorridente ter a mania de defecar antes de seus shows. A plateia aplaude e o entrevistador peca pela omissão, enquanto morrem à míngua em suas casas todos os grandes artistas brasileiros que não conseguem um ínfimo segundo de divulgação na televisão. Com muita raiva de ter sido despertado antes da hora, ainda mais nesse específico espaço geográfico, ele desligou a televisão e me fez jurar que só nascerá, caso realmente seja necessário, quando eu, porventura, estiver morando na Suíça.
Como não tenho verba sequer para pegar um ônibus e comer um sanduba em Vilar dos Teles, já que cometi o erro crasso de tentar trabalhar com cultura, essa futilidade desvalorizada, em uma nação onde os livros mais vendidos são escritos por ghost-writers e o maior líder político nunca terminou de ler um, fui obrigado a fechar os olhos e torcer para aquela alucinação sumir.
O que me conduz, num surto de conveniência absurda, ao tema do filme: o sumiço de um corpo, o mistério por trás de um caso fatal de coronária…
Um Misterioso Assassinato em Manhattan (Manhattan Murder Mystery – 1993)
Entediada, uma dona de casa (Keaton) passa a suspeitar que seu vizinho, um velhinho aparentemente pacato, matou a esposa. Obcecada pelo possível homicídio, ela tenta a todo custo convencer seu marido (Allen) a ajudá-la a resolver o caso.
Como é fascinante perceber a química irresistível entre Woody Allen e Diane Keaton, uma das melhores parcerias do cinema. O humor que brota em cacos sutilmente inseridos entre diálogos, um constante jogo de cena entre dois artistas que deixam claro o amor e o respeito que sentem um pelo outro.
Após um longo hiato, simbolizado pela irregular era “Mia Farrow”, a dupla se reúne em uma trama que homenageia a fórmula dos clássicos thrillers detetivescos hollywoodianos. O diretor sempre quis abordar esse universo, então aproveitou um momento tenso em sua vida para relaxar na condução do projeto, merecidas férias. Essa atitude mais despretensiosa nas filmagens acaba se refletindo positivamente no resultado final, considerado por muitos como o filme mais engraçado dele na década.
Nas cenas mais tensas, colocando em prática os ensinamentos de Hitchcock, Allen faz questão de revelar para o público os perigos, deixando-o sempre à frente dos personagens, o que potencializa o suspense, equilibrado com o seu característico senso de humor, elemento que, em tom diferente, também se fazia presente nos filmes do mestre britânico. Gosto bastante da maneira como o roteiro insere a obsessão da esposa como o catalisador de uma bem-vinda renovação naquela relação bastante desgastada.
A investigação atrapalhada conecta novamente o casal. É interessante também como a trama, numa camada de interpretação menos aparente, coloca em conflito o conceito de arte socialmente tida como séria e respeitável, o marido não suporta escutar ópera, e a arte popular, o cinema, especificamente o de gênero, que ludicamente emoldura o desfecho, com a referência direta ao “A Dama de Shangai”, de Orson Welles.
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