Enquanto somos crianças, com sorte, costumamos escutar de nossos pais lições valorosas sobre a necessidade do altruísmo, os malefícios do egoísmo exacerbado e a importância de deixarmos como legado um mundo melhor do que aquele que nos recebeu. Crescemos e esquecemos estes ensinamentos, preocupados apenas em acumular dinheiro, fazendo dele um instrumento para conquistarmos poder, status social, fama.
Poucos são os que utilizam seus recursos, financeiros ou intelectuais, para o bem maior. Ínfimos são os que reconhecem os esforços desses poucos. A questão que atinge a consciência com a força de um instrumento de silício: Vale a pena ser altruísta, sacrificar-se pelo bem maior, sabendo que existe uma grande possibilidade de, neste mundo moderno onde a elegância é alvo de deboche, você ser recompensado com o anonimato?
Selecionei, dentre meus favoritos, 10 filmes sobre indivíduos que, com suas atitudes nobres e altruístas, modificaram positivamente o ambiente em que viviam. A lista não está em ordem de preferência.
Em Cada Coração, Uma Saudade (All Mine to Give – 1957)
A trama se passa por volta de 1850 e conta o drama de um garoto de 12 anos que acaba de perder seus pais, necessitando cumprir a promessa que fez à mãe em seu leito final: distribuir seus cinco irmãos pequenos para boas famílias da região. Ele precisa amadurecer mais rápido e tomar uma decisão cruel, sacrificando seu amor pelos irmãos, objetivando o bem estar dos mesmos.
É difícil manter-se insensível nos vinte minutos finais. Os pais, vividos por Glynis Johns e Cameron Mitchell, eram imigrantes humildes, analfabetos, constantemente hostilizados pelos habitantes da região. O garoto, no dia do Natal, acaba se tornando o disseminador de uma nova geração, que, levando em consideração a boa criação dos pais, constituirão uma cidade melhor no futuro. Essa é a mensagem que a bela obra busca transmitir.
Viver (Ikiru – 1952)
Na obra de Akira Kurosawa, Takashi Shimura vive um homem no crepúsculo de sua existência. Vítima de um câncer, ele descobre ter desperdiçado sua vida sendo um funcionário modelo, sem faltas e reclamações, sem momentos de lazer, plenamente dedicado a uma função burocrática, que qualquer um poderia fazer e que só satisfazia seu empregador.
Balançando-se em um parque de diversões, emociona-se tentando voltar no tempo e corrigir seus erros. Sobrando-lhe pouco tempo de vida, ele então decide deixar um legado eterno, útil como algo tangível, na forma de um parque onde as crianças pudessem brincar, e filosoficamente eficiente, incentivando seus colegas a seguirem seu exemplo.
Já que a prefeitura sempre prometia, mas nunca construía aquela área de lazer, ele se redimiria com seu esforço, construindo algo que sobreviveria por décadas após sua passagem. Somente quando estava prestes a falecer, o nobre senhor decidiu finalmente viver.
Uma Voz nas Sombras (Lilies of The Field – 1963)
A simples história de um homem desempregado, vivido por Sidney Poitier, em papel que lhe rendeu um Oscar, que, numa parada para consertar seu carro em uma fazenda, acaba conhecendo uma pequena comunidade de freiras. Elas o veem como um enviado de Deus para ajudá-las a construir uma capela no meio daquele fim de mundo. Inicialmente ele se recusa, chega a desistir na metade, mas acaba retornando para finalizar aquela missão. Não existe motivo algum para que ele ajude aquelas senhoras, tampouco seu trabalho será reconhecido, mas ele parece encontrar um significado para sua existência naquele exaustivo trabalho braçal.
Zorba – O Grego (Alexis Zorbas – 1964)
Cada personagem na adaptação da obra de Nikos Kazantzakis pode ser visto como uma representação de elementos da psicologia humana. O poeta/escritor britânico ao interagir com a força livre da natureza, o personagem “Zorba”, estabelece eficiente metáfora a todas as tentativas de se reconectar com suas potencialidades criativas. O personagem vivido por Alan Bates chega à Grécia com a finalidade de tomar posse da herança deixada por seu
pai.
Ele representa o elemento da comodidade, conduzido por motivações lógicas e cheio de regras autoimpostas. Afastou-se tanto de sua própria natureza/instinto, que drenou sua energia criativa. Não consegue escrever uma linha no papel de sua vida. Esquecido de si mesmo, ele encontra sua antítese na forma do falastrão Zorba, vivido brilhantemente por Anthony Quinn, que esbanja descontrole emocional e racional, apaixonado pela vida.
Do encontro entre o racional e o impulsivo, nasce uma grande amizade que enriquecerá a experiência de vida de ambos.
Peixe Grande (Big Fish – 2003)
A melhor maneira de se compreender as atitudes de alguém, suas motivações e sonhos, é estabelecendo um muro que divida o que a pessoa acredita ser e sua real personalidade. As suas fantasias e desejos correspondem a uma imagem criada, por traumas, vitórias e derrotas. Uma infância de miséria e fome encaminhará a uma vida adulta em que o desejo por uma mesa farta seja prioridade. As fantasias de uma pessoa não mentem, expõem cruelmente detalhes que aos olhos treinados tornam-se páginas reveladoras em um livro aberto.
O filho do protagonista de “Peixe Grande”, não se importava em decifrar os segredos contidos no livro aberto que era seu pai. Jovem ambicioso, preocupado demais com sua vida profissional, sem paciência alguma com aquele nobre senhor e suas histórias repetidas. A perspectiva da finitude faz com que o jovem busque conhecer aquela incógnita falastrona, que sempre o deixava envergonhado em suas festas, com seus arroubos criativos.
Angustiado com a recusa do pai em se mediocrizar, tornar-se comum, seu filho então decide conduzir uma pequena investigação, que acaba levando-o a constatar que somente a fantasia, o lírico, realmente satisfaz de forma plena.
A Morada da Sexta Felicidade (The Inn of the Sixth Happiness – 1958)
A jovem inglesa, interpretada por Ingrid Bergman, que consegue fazer o impossível, resgatando e zelando pela segurança das crianças chinesas no período opressivo da guerra, conduzindo-as numa exaustiva e perigosa caminhada através das montanhas para um local seguro, havia sido inicialmente impedida de realizar seu sonho por não ter as qualificações necessárias para o trabalho. Ela precisou lutar para conseguir o dinheiro para a viagem, além de ter que se contentar com o trabalho de doméstica em uma hospedaria numa aldeia remota.
Situação que conduz diretamente para um belo momento que ocorre no terceiro ato, um discurso belíssimo de Robert Donat, que estava muito doente e faleceria pouco tempo depois, interpretando o Mandarim que, profundamente comovido com a força do espírito inquebrantável daquela jovem, declara a ela sua conversão para o cristianismo, fazendo questão de que aquela informação constasse nos escritos de seu povo.
O roteiro e a atuação evidenciam que aquele gesto simbólico não feria ou desrespeitava suas crenças pessoais, apenas sublimava o conceito de religião como um elemento que, pela sua etimologia, existe como um laço de piedade com o propósito único de religar os seres humanos ao conceito subjetivo do divino, algo maior do que os dogmas de qualquer ideologia religiosa.
Nenhum a Menos (Yi Ge Dou Bu Neng Shao- 1999)
A saga de uma professora obstinada e uma criança que não seria uma estatística. Esforço impressionante do sensível diretor Zhang Yimou em retratar o lado mais belo da natureza humana. Com um elenco de amadores que utilizam seus próprios nomes, e ocupam funções parecidas com a de seus personagens, o filme fala sobre uma jovem de treze anos (Wei Minzhi) que vive em um pobre vilarejo chinês, afastado da civilização. Quando o professor da humilde escola primária local precisa ausentar-se por um mês, o prefeito convoca a menina para ser a professora substituta.
O modesto pagamento será dado caso ela consiga evitar a desistência das crianças. As famílias são paupérrimas e não existe esperança nos olhos dos alunos, que externam a angústia com atos de rebeldia. Yimou inicia a obra nos fazendo crer que a obstinação da menina é guiada apenas em função do pagamento, porém, ao longo da trama, ele nos emociona ao mostrar a devoção do antigo professor, que com um número limitado de gizes e sem dinheiro para repô-los, utiliza até mesmo o pó que resta em seus dedos, para concluir seus ensinamentos na lousa.
O Vento Será Tua Herança (Inherit The Wind – 1960)
A trama, baseada em um caso real ocorrido em 1925, é um exemplo de como Stanley Kramer conseguia esquivar-se do panfletarismo ideológico, buscando compreender os dois lados, retratando-os com o mesmo carinho. Não existem estereótipos, vilões detestáveis e mocinhos amados, apenas homens psicologicamente tridimensionais que realmente acreditam deter a razão, sendo colocados em natural conflito de ideias.
O professor vivido por Dick York é afastado de sua sala de aula exatamente por estimular seus alunos ao livre pensar, ensinando-os sobre a evolução das espécies. A população da cidade é mostrada desde o início como zumbis, máquinas que não questionam nada no ritual diário. Kramer também evidencia a impossibilidade da coexistência entre ideologia religiosa e política, culminando no discurso final do personagem de March, um homem que possuía uma grandeza de valores em sua juventude, mas que se perdeu ao extravasar frustrações e complexos em sua crença.
Serpico (1973)
O protagonista está sentado descansando em seu jardim, escutando a ária “E Lucevan le Stelle”, momento marcante da ópera Tosca, em que o revolucionário Cavaradossi aguarda seus últimos minutos de vida em uma prisão. Um detalhe que pode passar despercebido, mas que demonstra a sensibilidade criativa do diretor Sidney Lumet, que adaptou a história real imortalizada no livro de Peter Maas. O trágico pintor de Puccini e o policial íntegro interpretado brilhantemente por Al Pacino possuem muito em comum, especialmente a qualidade de manterem-se fiéis aos seus valores, mesmo quando confrontados pela total desesperança.
Frank Serpico só queria fazer seu trabalho, não defendia nenhuma causa nobre, mas cometeu o crime de ignorar que o sistema alimentava a corrupção que, em teoria, deveria combater. O roteiro de Waldo Salt e Norman Wexler mostra a gradual frustração de um jovem que tinha uma visão idealizada de como ser um oficial da lei. O desconforto inicial ao perceber os primeiros deslizes de seus colegas, o choque ao constatar que seus superiores temiam sua resistência a receber propina, pois acabaria se tornando como o rei sábio do conto que escuta de sua namorada, um louco aos olhos daqueles que beberam da fonte envenenada pela ganância. Ele não estava disposto a sorver sequer uma gota daquela água pestilenta.
A Viagem de Chihiro (Sen to Chihiro no Kamikakushi – 2001)
Impossível não compararmos a clássica história de Lewis Carrol com esta joia de Hayao Miyazaki. Tanto Alice quanto Chihiro vivem em um mundo em que o real e o fantástico andam de mãos dadas, limitados apenas pela imaginação da protagonista. A meu ver, o roteiro do mestre japonês consegue, em sua simplicidade, superar “Alice no País das Maravilhas”, “Alice no País dos Espelhos” e qualquer outra obra similar a esses conceitos.
A jovem japonesa se sente entediada no banco de trás do carro de seus pais, no que lhe parece uma interminável viagem. O mundo que ela vislumbra pela janela é desinteressante, assim como o falatório de seus pais, que lhe parece vazio. Sua mãe afirma que se mudar para outra cidade é uma aventura divertida, porém os olhos tristes da menina residem ainda em sua velha escola, seus amigos, laços que se desfazem à velocidade do vento que atravessa a janela do carro e perturba seu cabelo. O momento em que a fantasia se funde à realidade ocorre de maneira semelhante no conto de Carrol, quando Alice segue o coelho e adentra em sua toca.
Chihiro e seus pais descobrem o que acreditam ser um parque de diversões abandonado, quando procuravam um atalho na estrada. As duas personagens encontram de forma inusitada um gatilho que desperta nelas a melhor fuga para seus problemas: um mundo paralelo, que reflete em lindas metáforas todos os estágios da vida, onde as jovens evoluem enfrentando obstáculos aparentemente impossíveis.
Chihiro inicia o filme como uma garota ingênua, medrosa e mimada, tornando-se ao final uma mulher madura e valorosa. Miyazaki ainda encontra tempo em sua obra para incutir críticas à uma sociedade que parece visar apenas o “ter”, não o “ser”.
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