Ganga Bruta (1933)
Um homem (Durval Bellini) casa com uma mulher (Lu Marival), descobre que ela não era pura na noite de núpcias. Revoltado, ele elimina a mulher. Ele vai a julgamento e é absolvido por unanimidade. Sai da cidade grande, enriquece com sua usina, conhece uma jovem (Déa Selva) e acaba se apaixonando por ela. A garota tem um noivo (Décio Murillo), que, ao descobrir o romance, parte para o confronto.
Não há nada na trama que sinalize a importância desse clássico da Cinédia. É pura arte imagética, forma sobrepondo-se ao conteúdo, cinema em estado bruto, obra-prima do pioneiro diretor Humberto Mauro, falecido em 05 de Novembro, de 1983. No mesmo dia, mês e ano, nascia este que vos escreve.
Iniciado em 1931, o longa mudo sofreu atrasos consideráveis. O produtor Adhemar Gonzaga sonhava rodar o projeto na Amazônia, o que acabou não acontecendo, com problemas de verba e carência de filme. Ainda assim, a produção simbolizava uma maturidade profissional do cinema nacional, com cenas internas captadas por quatro câmeras, algo usual na Hollywood da época, porém, novo para os nossos padrões de outrora.
Quando foi lançado, em 1933, já inserido numa sociedade deslumbrada com o cinema sonoro, o projeto teve que ser adaptado para a nova demanda, com a inserção de trechos de áudio, diálogos, ruídos e canções. O mais bonito é constatar que, a despeito destas modificações, o silêncio continua sendo o aspecto mais interessante e criativo no resultado final. O som, uma inovação na época, analisado hoje, é o elemento datado, enquanto a poesia visual de Mauro segue relevante.
O que muda na mente do protagonista, do primeiro casamento, que inicia a trama, ao segundo casamento, no desfecho? O primeiro crime cometido foi consciente, o segundo foi involuntário, o rapaz acaba se afogando (simbolicamente, em seu próprio ódio), ainda que o homem tenha resgatado ele das águas. Vale destacar o simbolismo do afogamento, uma espécie de novo nascimento, já que o resgate da jovem que estava se afogando foi o gatilho emocional que despertou a paixão dele. Outro símbolo que se repete é o do crucifixo, presente na montagem da cena do casamento final, metaforicamente dando àquele ritual o peso do sacrifício cristão, em que dois pecadores se unem na esperança da remissão.
O tom é irônico, o ser humano é o diamante bruto, frágil, inseguro, carente. O exílio na cidade do interior não se mostrou garantia de paz, muito menos interna. A pureza física da jovem não significava pureza moral, a garota se divertia jogando com os sentimentos dos dois personagens. Ao subverter estes valores, o roteiro se mostra à frente de seu tempo. Em sua dinâmica montagem claramente inspirada pelo trabalho de Eisenstein e Dziga Vertov, a relação romântica é insinuada em uma sequência que mostra os operários trabalhando na usina, ferramentas operando como símbolos.
Vale salientar a competência da montagem na sequência de luta no bar, ainda hoje, um primor de ritmo. É lindo também o flashback despertado por um violão em seresta, um recurso que, somado aos ângulos e planos inovadores, representa uma audácia criativa ainda rara em nossa trôpega indústria.
Humberto Mauro continua sendo, especialmente em nosso período pobre atual, dominado pela estética televisiva na tela grande, um dos poucos realizadores brasileiros que verdadeiramente compreendem o potencial da Sétima Arte.
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