Em mais uma entrevista exclusiva para o “Devo Tudo ao Cinema”, conversei com o amigo Fernando Brito, curador da distribuidora Versátil, uma guerreira do home video nacional, responsável por resgatar filmes clássicos de diversos gêneros, na maior parte das vezes, inéditos no mercado brasileiro. Primando sempre pela excelência, tanto na apresentação, quanto no conteúdo, com material extra sempre legendado, a Versátil merece reconhecimento por seu trabalho de resgate cultural.
O – Fernando, sem maiores delongas, eu quero abordar algo
que me irrita. Após todo o trabalho exaustivo que vai da seleção do material,
inclusive os extras e preparação/tradução de legendas, passando pela
apresentação do produto, até o pós-venda, a interação com os clientes, você se
depara com aquele grupo que quer crucificar a distribuidora por não estar
lançando tudo em Blu-ray. Você sempre responde educadamente, salientando que a
relação custo/benefício está longe de ser interessante, especialmente na atual
situação nacional, porém, eles sempre estão lá, por vezes, ríspidos e
agressivos. Na maior parte das vezes, é uma garotada que parece valorizar mais
o formato do que o conteúdo, eles são colecionadores de mídia, mais do que
colecionadores de filmes. O tipo de comprador que adquire três edições
diferentes do pior blockbuster, apenas para ficar bonito na estante. Como você
analisa esse comportamento?
F – Eu entendo que uma parte dos colecionadores gostaria que
(quase) todos os filmes fossem lançados apenas em Blu-ray no Brasil já há muito
tempo, devido à inquestionável superioridade do formato, em termos de imagem e
som, com relação ao DVD. Infelizmente, alguns desses colecionadores não
percebem que, diferentemente do que ocorreu nos EUA e em alguns países da
Europa, o Blu-ray não decolou no Brasil, devido ao alto custo de produção em
todas as etapas – máster HD, autoração, replicação, e também a acolhida morna
por parte do público, já que muitas pessoas ainda não têm um aparelho de Blu-ray
em casa. Outro agravante no nosso caso é que a maioria dos filmes clássicos,
cults, produções europeias e asiáticas ainda não estão disponíveis em alta
definição mesmo no exterior, tendo sido lançadas apenas em SD. Portanto, mesmo
se quiséssemos lançar tudo em Blu-ray a partir de agora, não seria possível
contemplar obras-primas como “Soberba”, “Paixão Selvagem”, “O Ciclo do Pavor”,
“Martin”, “O Segredo das Joias”… – isso para citar apenas algumas das
maravilhas lançadas pela Versátil este ano.
Mas por outro lado, como você é testemunha, procuramos lançar cópias de
excelente qualidade em DVD, oferecendo o que há de melhor no formato SD, sempre
que possível acompanhado de farto material extra (entrevistas, documentários,
trailers, comentários em áudio, etc.).
O – Tendo, assim como você, vivido plenamente a era do
reinado do VHS, onde os filmes clássicos, aqueles que, por sorte, eram
lançados, tinham pouquíssima qualidade de imagem e som, acredito firmemente
que, hoje, vivemos o melhor momento do home vídeo nacional. E a Versátil tem
papel fundamental nessa afirmação. Enquanto as distribuidoras majors reciclam,
ano a ano, aquela mesma meia dúzia de clássicos, vocês estão, especialmente de
uns três anos pra cá, abusando da competência e fazendo justiça ao nome da
distribuidora, investindo em gêneros injustamente marginalizados, com o mesmo
refinamento que dedicavam aos celebrados diretores europeus, ou, até ouso
dizer, com mais refinamento. Citando apenas alguns, o Giallo, o Cinema Samurai,
já na quarta caixa, os filmes de Yakuza, o Sci-Fi, o Terror, em três
fantásticas caixas, Noir, Guerra, Faroeste, filmes italianos de zumbi, entre
outros. Agora, pela primeira vez, o cinéfilo brasileiro pode ter, em sua
cinemateca pessoal, um acervo verdadeiramente abrangente, formado, quase que em
sua totalidade, por filmes que sequer haviam sido lançados em VHS por aqui, com
excelente qualidade de imagem, som e material extra. Foi sua a ideia de apostar
nessa versatilidade temática? Aborde a importância dessa valorização, pelo
ponto de vista da formação de novos cinéfilos.
F – Há mais de dez anos, viajo em média duas vezes por ano à
Europa, para participar das principais feiras de conteúdo audiovisual, na qual
compramos os direitos autorais de nossos títulos. Nessas viagens, procuro
observar o que tem sido feito lá fora pelas principais distribuidoras de home
vídeo do mundo. Aliando esse conhecimento in loco do mercado exterior e também
a minha cinefilia, cultivada com muita paixão e uma vontade incansável de
pesquisar, percebi que o caminho a seguir era justamente esse – investir em
coleções temáticas, oferecendo pequenas mostras de cinema ao colecionador
brasileiro, ao escolher produções relevantes e raras, e um material extra de
grande interesse, já que o filme não é apenas o filme, mas também tudo aquilo
que o cerca.
O – Um dos meus sonhos era, enquanto colecionador de filmes,
ter na estante a obra completa de Mario Bava. Cheguei até a comentar isso
contigo uma vez, quando ele estava estreando na distribuidora. Na realidade
mercadológica de outrora, parecia algo impossível. Hoje, pouco tempo depois do
início desse namoro da Versátil com o mestre italiano, vocês já lançaram
praticamente todos os filmes dele, pelo menos, os mais importantes. E como sei
que Bava é o objeto de um curso seu, peço que explique como nasceu essa
admiração, aborde os aspectos que considera mais geniais em seus trabalhos, e,
claro, fale sobre o curso.
F – Conheci Mario Bava pela primeira vez quando trabalhava na
2001 Vídeo da Avenida Paulista, loja aliás que está fechando agora, isso no
final dos anos 90. Na ocasião, a capinha do VHS de “O Planeta dos Vampiros”
chamou a minha atenção. Mesmo vendo essa ficção-científica numa cópia escura,
cortada e editada com nova trilha, fiquei fascinado pela inventividade visual
daquela produção barata. Anos depois, já como curador da Versátil, nos
ofereceram os direitos de um pacote de filmes do Bava e nos enviaram os
screeners de filmes como “Lisa e o Diabo”, “A Maldição do Demônio”, etc. Gostei
muito do que vi, mas fui voto vencido, já que a direção da Versátil resistia em
entrar para o mercado de cinema de gênero. Com o lançamento de “Brecht no
Cinema”, coleção temática pioneira, e de “Musashi – Trilogia Samurai”, consegui
provar a viabilidade dos dois conceitos – cinema de gênero e coleções
temáticas, e pouco tempo depois, o maestro do macabro estreou na Versátil com o
lançamento de “O Chicote e o Corpo” na caixa “Obras-Primas do Terror” em agosto
de 2014.
De lá para cá, lançamos outros 13 filmes de Bava – “Lisa e o Diabo”,
“O Ciclo do Pavor”, “A Maldição do Demônio”, “A Garota que Sabia Demais”, “Cães
Raivosos”, “O Alerta Vermelho da Loucura”, “Banho de Sangue”, “O Planeta dos
Vampiros”, “Seis Mulheres para o Assassino”, “Black Sabbath – As Três Máscaras
do Terror”, “Os Horrores do Castelo de Nuremberg”, “Os Vampiros” e “Schock” (os
últimos quatro saem em fevereiro de 2016). Nesse meio tempo, fui convidado pela
Cena Um para dar um curso num final de semana na Cinemateca Capitólio de Porto
Alegre. Foi uma oportunidade única, com uma excelente aceitação dos alunos. Nos
preparativos do curso, pude ver toda a filmografia “oficial” de Bava, 24 ou 26
filmes dependendo do critério. Resumir a importância do mestre maior do cinema
popular italiano em poucas linhas é impossível, mas cito um trecho da
apresentação do meu curso: “dimensionar a importância e o legado de Mario Bava
é uma tarefa hercúlea devido à riqueza e à variedade de sua obra. Afinal, ele
codirigiu o primeiro filme de horror do cinema italiano desde a era silenciosa
(‘Os Vampiros’), criou as maiores obras-primas do terror gótico italiano (‘A
Maldição do Demônio’, ‘As Três Máscaras do Terror’, ‘O Ciclo do Pavor’, ‘O
Chicote e o Corpo’ e ‘Lisa e o Diabo’), codificou as convenções visuais e o
sadismo voyeurístico do giallo com ‘A Garota Que Sabia Demais’ e ‘Seis Mulheres
para o Assassino’, antecipou o slasher com ‘Banho de Sangue’, além de ter
deixado obras-primas e filmes marcantes em muitos gêneros, como o poliziottesco
(‘Cães Raivosos’), a ficção científica (‘O Planeta dos Vampiros’) e o peplum (‘Hércules
no Centro da Terra’; ‘A Vingança dos Vikings’ e ‘Os Punhais do Vingador’)”.
O – Sei que intensificou sua paixão pelo cinema frequentando
a Cinemateca, cineclubes e atrás do balcão de uma videolocadora, indicando os
filmes para os clientes. Você, como todo bom amante dessa Arte, tem o instinto
do garimpeiro. Sempre digo que o resgate da memória cultural, a valorização do
passado, é essencial em uma sociedade que preze por um futuro digno. Disserte
sobre essa afirmação, salientando a importância desse instinto em sua função de
curador.
F – O conhecimento da história do cinema, sem preconceitos de
gênero, ano de produção ou país, é uma tarefa obrigatória de todos aqueles que
se dizem cinéfilos ou mesmo que trabalham no audiovisual, além de ser uma
jornada fascinante. Afinal, o passado, o presente e o futuro são inseparáveis,
por mais que alguns pseudointelectuais e supostos/autoproclamados gênios tentem
afirmar o contrário.
O – Eu lia seus textos sobre cinema clássico na extinta
revista Sci-Fi News Cinema. Você é um excelente crítico, ainda que não se
dedique a essa função hoje. Acredito que, pelo menos alguma vez, já passou por
sua cabeça a ideia de roteirizar e dirigir um filme. Estou errado? E,
aprofundando a pergunta, como você analisa o cinema brasileiro de hoje? O que
pode melhorar?
F – Obrigado pelos elogios. Sim, já desejei roteirizar e dirigir
um filme. Quem sabe, um dia, ainda consiga tirar esse sonho do papel. O bom
cinema brasileiro hoje é aquele que busca fugir da estética televisiva que
busca agradar multidões e que nivela tudo por baixo.
O – Sei que o faroeste é o seu gênero de formação. Eu também
nutro carinho especial pelo gênero, cresci devorando aqueles livrinhos de bolso
que eram vendidos nas bancas de jornal. Conte como as pradarias do Velho Oeste
encantaram o menino de outrora? Quais filmes eram os seus favoritos na época?
E, complementando, como você vê o resgate do gênero atualmente, em obras como o
excelente “Dívida de Honra”, do Tommy Lee Jones?
F – Aprendi a amar o faroeste não só alugando fitas VHS nas
videolocadoras quando adolescente, sempre na companhia do meu irmão mais velho,
mas também com a leitura dos fumetti da editora de Sergio Bonelli, como “Tex”,
“Zagor” e, sobretudo, o magnífico “Ken Parker”. Na época, já me encantaram
“Rastros de Ódio”, “O Homem que Matou o Facínora”, “Sete Homens e um Destino”,
“Um Homem Chamado Cavalo”, “Era uma Vez no Oeste”, “Rio Vermelho”, “Onde Começa
o Inferno”, “Três Homens em Conflito”, “Por um Punhado de Dólares”, “Meu Ódio
Será a Sua Herança”, “Jogos e Trapaças – Quando os Homens São Homens”, entre
outros. Sou daqueles que vibra quando um faroeste contemporâneo é lançado.
Gostei muito de “Dívida de Honra”, assim como “Pacto de Justiça”,
“Desaparecidas”, “A Proposta”, entre outros raros faroestes recentes. E estou
na expectativa de “Os Oito Odiados”, já que “Django Livre” deixou esse fã de
faroeste decepcionado.
O – Acho fascinante a série “A Arte de…”, tipo de coisa
que me remete ao garoto apaixonado por cinema que, na década de 80, rabiscava
os títulos dos filmes, divididos tematicamente, gravados em EP, numa fita VHS.
Compilar filmes importantes, significativos, de um diretor. Vocês já lançaram
Samuel Fuller, John Cassavetes, Mario Bava, François Truffaut, Robert Altman,
Andrei Tarkóvski, Dario Argento e Jean-Pierre Melville. Alguns destes, como
Altman e Tarkóvski, sofriam em nosso mercado de home vídeo, que os ignorava,
ou, na melhor das hipóteses, eram lançados sem qualidade alguma. Fale um pouco
de como foi elaborada essa série e sobre a importância de jogar luz em
cineastas mais obscuros. E, claro, podemos esperar mais títulos na série para
2016?
F – A série “A Arte de” foi concebida para oferecer, a um
excelente custo-benefício, um recorte da filmografia de grandes cineastas,
mesclando obras-primas consagradas já lançadas por aqui em cópias ruins ou de
origem duvidosa e as famosas pérolas, filmes menos conhecidos, muitas vezes
ainda inéditos no mercado brasileiro. Em 2016, a série continua a todo vapor,
com dois volumes já em janeiro – “A Arte de Federico Fellini” e “A Arte de
Brian De Palma”. Posso adiantar que, em março, o volume da coleção estará
intimamente ligado à coleção temática do mês. Garanto que faremos a felicidade de muitos cinéfilos.
O – O meu gênero de formação foi o terror. Hellraiser foi
minha “Turma da Mônica” (rs), meu pai cansou de alugar o VHS, após eu ficar
horas admirando a arte de capa. Após o advento do DVD, pensei que poderia,
finalmente, montar uma coleção bacana no gênero, mas, infelizmente, com exceção
de lançamentos pouco inspirados, os clássicos (americanos, italianos,
espanhóis, japoneses) estavam sendo ignorados. As poucas distribuidoras que
tentavam nadar contra a corrente, como a “Darkside”, que chegou a lançar até
filmes da Hammer, acabaram cansando rápido. Vocês estão realizando um trabalho
primoroso, com um tratamento inédito no gênero, lançando pérolas como: “Terror
nas Trevas”, “Os Meninos”, “À Beira da Loucura”, “Quando Chega a Escuridão”,
“Não se Deve Profanar o Sono dos Mortos”, o ciclo de adaptações de Edgar Allan
Poe por Roger Corman, e “Zombie – Despertar dos Mortos”, entre outros, com
farto material extra, devidamente legendado. Como foi o início desse namoro da
Versátil com o terror? Sei que você é um estudioso da literatura gótica, então,
conte sobre o fascínio do gênero em sua cinefilia. Quais são os seus filmes
favoritos? E, claro, podemos esperar mais filmes do gênero para 2016?
F – Sou doutor em Literatura Inglesa, com uma tese sobre romance
gótico. Sempre gostei de terror e procurei, desde adolescente, a conhecer a
história do gênero, alugando fitas VHS e frequentando mostras na Cinemateca e em
outros cineclubes. Difícil escolher meus favoritos, mas cito alguns (com
certeza, já cometendo alguma injustiça rs): “Lisa e o Diabo”, “A Maldição do
Demônio”, “O Ciclo do Pavor”, “O Chicote e o Corpo”, “Suspiria”, “Os
Inocentes”, “O Exorcista”, “Halloween”, “O Massacre da Serra Elétrica”, “A
Noite do Demônio”, “Sangue de Pantera”, “O Despertar da Besta”, “O Enigma do
Outro Mundo”, “Kwaidan”, “Onibaba”, “Os Meninos”, “A Noiva de Frankenstein”, “O
Gabinete do Dr. Caligari”, “O Iluminado”, “A Noite dos Mortos-Vivos”, “O
Despertar dos Mortos”, “Nosferatu” (as duas versões), “A Hora do Lobo”, etc.
etc. etc.
O – Muitos sinalizam para o fim das mídias físicas. Acredito
que, por mais interessante que seja ter uma coleção de livros em um minúsculo
pen drive, nada irá substituir a beleza de uma estante lotada de tomos.
Editoras como a “Darkside Books” e a “Aleph”, com um tratamento refinado, mostram a força
do livro físico no mercado. Eu não troco uma edição de luxo da Versátil por uma
sessão do filme na nuvem. O apaixonado preza pelo tangível, ele gosta de
admirar seus filmes na estante, reler os dados da contracapa. Como você,
estando inserido nesse mercado, analisa essa questão?
F – Concordo plenamente com sua constatação. O colecionador não
se contenta em ter arquivos no HD. O produto de nicho, explorado pela Versátil
no home vídeo e pela Darkside, Aleph e outras no mercado editorial, é o que
sobreviverá às mudanças, já que oferece uma experiência completa (conteúdo –
filme e extras, embalagem, cuidado na tradução, encartes, cards, etc.),
impossível de ser comparada às nuvens do mundo virtual.
O – Fernando, obrigado pela entrevista, parabéns pela
competência com que realiza seu trabalho de resgate cultural. Peço que deixe
uma mensagem especial para os meus leitores, com certeza, clientes da Versátil.
F – Sem vocês, que cultivam seu amor ao cinema colecionando
grandes filmes, nosso trabalho de cinefilia não seria possível.
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Excelente e esclarecedora entrevista, parabéns ao Fernando (não perco os seus comentários mensais sobre os lançamentos da Versátil, sempre quero mais)e a você Octavio, estou ansioso pela chegada do seu livro.
Abraços e feliz Ano - Novo.
Jaime_Boaventura.