Diário
13 de Janeiro – 1920 – 20:30
Voltei para o salão e, sem cerimônia, fui abraçado por Mary Pickford, que me conduziu para um dos poucos ambientes vazios no local. Ela demonstrava certo cansaço, percebi que aquelas convenções sociais não a agradavam muito. Eu senti que era o momento de arriscar uma entrevista informal, então liguei o gravador e iniciei a conversa.
– Quer que eu ajude você a colocar todo esse povo pra fora? – ela explodiu numa gargalhada, enquanto se ajeitava no sofá.
– Eu já me acostumei com essas grandes festas, mas não consigo entender porque elas duram tanto tempo. Por dentro, ainda sou uma garota simples, de hábitos simples.
– Já que tocou no assunto, como você entrou nesse mundo? – ela ficou alguns segundos com o olhar perdido no horizonte.
– Eu comecei muito nova no teatro, não sou uma dama da sociedade, não nasci pra isso, tive apenas três meses de educação formal, valorizo tremendamente aquele que aprende por dedicação, sozinho, lendo bastante, o verdadeiro artista. Tudo isso – e ela gesticula largamente, como se envolvesse todo o ambiente em seus braços delicados. – É ilusão. Nada disso vai sobreviver ao nosso tempo, por isso mesmo farei questão de deixar registrado que todos os meus filmes serão destruídos após a minha morte.
– Você está brincando?
– Não poderia estar falando mais sério, querido rapaz. Não quero que os netos do meu público de hoje debochem de nossas produções. – ela percebeu meu choque, tentou descontrair o clima com um daqueles sorrisos que conquistaram o mundo.
– Eu acho um crime impedir que as gerações futuras conheçam um trabalho tão bonito como “Stella Maris”.
***
“Stella Maris”, dirigido por Marshall Neilan em 1918, é um dos filmes mais importantes da carreira de Mary Pickford, onde ela interpreta dois personagens física e psicologicamente antagônicos, com a ajuda de truques pioneiros de superimposição.
***
– Você é muito gentil, eu também tenho muito carinho por esse filme, mas, entenda, não existe futuro para o cinema. E eu não quero ser vista como uma velha aberração de circo. – novamente, ressalto que fiquei impressionado com a visão limitada dos profissionais da época sobre aquilo que produziam.
– Mary, se nem a Influenza te matou, eu tenho certeza que não será essa preocupação que vai te tirar o sono.
– E não me tira mesmo, pode acreditar. Só acho que tudo tem seu tempo. Quando me maquiaram pro meu primeiro teste pra Griffith, eu parecia o Pancho Villa, uma coisinha esquisita. Olhei no espelho e tive vontade de sair correndo e desistir de tudo. E nem isso me desmotivou, segui em frente… – cortei seu discurso, segurando em sua mão, deixando a emoção do momento me levar.
– A queda não importa, o nobre é saber levantar. Você não faz ideia de como seu trabalho será valorizado no futuro, querida. Não me pergunte como, apenas acredite. – percebendo que me exaltei e cometi um equívoco, tentei conduzir sorridentemente a conversa para outro tema, manobra facilitada pelo som dos latidos dos cães do casal que irrompiam do lado de fora. – Com o Douglas, foi amor à primeira vista?
– Como não seria? Ele, como um galante cavalheiro, desde o nosso primeiro encontro, sempre me resgata nos braços, protegendo-me de qualquer perigo. – por mais sinceridade que ela colocasse em suas palavras, senti um tom de teatralidade em seu olhar vago, que, somado ao pouco tempo que o homem dedicava à esposa na festa, acabou me deixando uma impressão de relacionamento forjado para os holofotes, um acordo interessante para os dois.
– Eu percebi que você não se dá muito bem com o Charlie. Estou certo? – ela demonstrou claramente o incômodo com a pergunta.
– Charlie é um sócio figurativo, empresta o nome, não a alma… – Indisfarçavelmente confuso, cortei o discurso e tentei fazer com que ela fosse mais objetiva.
– Você está se referindo à parceria na United Artists?
– Também, claro. Ele não se envolve como Dougie, Griffith e eu. Ele está preocupado demais com o tamanho do seu nome no cartaz. – percebendo meu desconforto, ela se aprofundou no tema, desviando da amargura com o colega. – Na realidade, antes de nos unirmos, os atores eram até alvo de deboche dos produtores, que nos mantinham afastados dos estúdios. Eu soube que os produtores estavam planejando retirar cada vez mais a participação dos atores, dos roteiristas, no filme pronto. Os salários também seriam acertados seguindo um padrão, os artistas não teriam mais opinião sobre o corte final.
Charlie gosta de levar a fama, mas eu convoquei a primeira reunião.
– Entendo perfeitamente a sua posição.
Nesse momento, alguns convidados entram no ambiente, interrompendo a entrevista. Mary pega meu braço, agradece por eu tê-la salvado por alguns minutos daquela turba, e então, com extrema graciosidade, some entre os vários ombros do salão ao lado. Olho para a mesa próxima, onde o livro de visitantes de Pickfair repousa elegantemente. Em um rompante de coragem irresponsável, encontro o espaço em branco, assino meu nome, com uma pequena observação carinhosa ao lado: “Mary, não apague o seu legado profissional”.
Hoje, sabendo que ela viria a se tornar uma defensora dedicada da preservação dos
filmes, que chegou a apoiar a criação de um museu dedicado à arte cinematográfica, gosto de pensar que, com ajuda de Lillian Gish, que também aconselhou ela nesse sentido, tive algo a ver com essa mudança de pensamento.
Continua…
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