Críticas

“Timbuktu”, de Abderrahmane Sissako, na LOOKE

Timbuktu (2014)

Hoje pela manhã (texto escrito em março de 2016), mais uma tragédia anunciada, atentado terrorista em Bruxelas, pelo menos trinta vítimas, ato assumido pelo Estado Islâmico. É óbvio o perigo do fanatismo fundamentalista religioso no mundo todo, mas é interessante abordar a realidade desumana em que vivem aqueles que estão inseridos nesse sistema, não por consciente escolha ideológica, pessoas que se acostumaram com uma rotina de medo, culpa e punição, administrada por agentes do ódio. É o que mostra o excelente “Timbuktu”, dirigido por Abderrahmane Sissako.

A sua impactante cena final rima com o símbolo metafórico utilizado no início, a perseguição no deserto, entre um veículo lotado de jihadistas armados e um solitário filhote de cervo. O animal, desamparado como a menina que acaba de perder os pais, eliminados em um julgamento, fugindo para lugar algum, sendo sufocada pelas tradições de seu povo, questionando repetidamente ao vento sobre a razão daquela violência.

O pai dela, um músico pacífico, alguém que sequer sabe brigar corpo a corpo, motivado pela tristeza da filha com a perda de sua vaca, vai ao encontro do criminoso para se vingar. Ele, a despeito dos pedidos da esposa, carrega um arma. No calor da briga, sem querer, ela dispara, eliminando o seu oponente. Nesse momento, esse pai honrado passa então a ser julgado por homens sem honra, fanáticos armados que vivem pela guerra. Ele, que se arrepende de ter levado a arma, julgado por pessoas que não se arrependem de eliminar estranhos a sangue frio.

A beleza da esposa, que lava os cabelos numa bacia, enquanto um jihadista aproveita a ausência do marido para flertar com ela. O hipócrita pudor que rege a exigência dele para que ela cubra o rosto, gesto que ela repudia.

Esta cena resume o sistema absurdo e dicotômico que esses homens defendem: ele pode se encantar pela mulher casada e desrespeitar o marido dela, mas considera uma provocação ofensiva o simples ato da mulher em exibir sua cabeleira. O véu, ferramenta grosseira de submissão, uma sociedade tão datada quanto os dinossauros, mas com a sorte de não ter sofrido as consequências da queda de um meteoro.

Como esquecer a forte cena em que a pobre mulher é severamente punida por cantar alegremente? Com as lágrimas vertendo no rosto, o canto volta a ser escutado, resiliente, como instrumento de rebeldia. O corajoso roteiro apresenta outra personagem que resiste bravamente, uma espécie de bruxa que veste cores vivas, caminha com segurança entre os opressores, impede a passagem de um jipe dos jihadistas, em suma, um elemento verdadeiramente humano inserido naquele cenário desumano. Nesta atitude, a esperança de que algum dia o fanatismo fundamentalista religioso, assim como os dinossauros, faça parte apenas dos livros de História.

Em um dos momentos mais belos em sua poesia, que remete ao pianista de Polanski dedilhando o espaço vazio e a partida de tênis imaginária em “Blow Up”, os habitantes de Timbuktu, apreciadores do futebol que é proibido, brincam com uma bola imaginária em uma partida teatralmente perfeita.

A resistência de um povo que, por um tremendo azar geográfico, já nasceu em uma cultura retrógrada em que imperam o medo, a violência e a opressão. E, analisando em longo prazo, tudo sempre começa quando o indivíduo abdica de sua liberdade básica, quando ele aceita a submissão como algo válido…

Octavio Caruso

Viva você também este sonho...

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