Relatos Selvagens (Relatos Salvajes – 2014)
O diretor argentino Damián Szifrón levou sua experiência de televisão, a linguagem popular e objetiva de uma mídia que se espreme entre intervalos comerciais, para esta rara antologia cinematográfica em que todas as seis histórias funcionam muito bem.
O humor é elegante até mesmo nas situações mais absurdas, como na última trama ambientada na festa de casamento, visualmente rimando com várias cenas do “Titanic” de James Cameron, representando o choque de realidade de uma mulher que acreditava que sua relação com seu marido era “inafundável”.
A cena estabelece uma crítica inteligente dos rituais tolos que envolvem uma cerimônia que, em sua essência, elimina toda a espontaneidade do romance em favor de um conjunto de regras antinaturais, em que o casal se torna um espetáculo desgastado da Broadway, dois indivíduos com personalidades fascinantes transformados em um padronizado souvenir para ser apreciado pelos convidados, em grande parte, estranhos bem vestidos, numa festa que simboliza o desejo por aceitação na sociedade, mais do que a intimista celebração do amor.
Ao final, sem a maquiagem social, após um clímax que é coerentemente filmado quase como uma sessão de descarrego, os dois se reencontram com a espontaneidade que os uniu outrora. Eles se surpreendem com a constatação de que o sentimento havia sido suprimido pelos rituais.
O leitmotiv do filme, o instinto primitivo que é despertado nos homo sapiens em situações extremas, encontra neste conto final a sua melhor definição. Nos anteriores, como o da briga cartunesca dos motoristas na estrada, o da garçonete que se culpa por querer vingança, o do pai que protege sua cria entregando um funcionário para o sacrifício, ou o grandioso revide moral do tipo James Stewart vivido por Ricardo Darín, todos trabalham o conceito da negação da racionalidade em alguém que é levado às últimas consequências, a estupidez tragicômica da obliteração da lucidez.
Somente no episódio do casamento temos uma reflexão realmente profunda que evidencia o fato de que somos selvagens domados por rituais diários autoimpostos, com a plena consciência de que são frágeis ilusões, alegoricamente representadas pela festa que oficializa o contrato, animais passionais que buscam instintivamente pelo cabresto, que beijam a mão daquele que os cerceia, que encontram paz na convicção em deuses que seguram firmemente a coleira.
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