Sobre o protesto da equipe do filme nacional em Cannes? Em
uma democracia, o direito de protestar é inalienável sobre qualquer tema, ainda
que você não concorde com os argumentos. É errado boicotar o filme, como tenho
lido em algumas postagens nas redes sociais. A obra não pode ser prejudicada
pela ideologia política de sua equipe. Se eu concordo com os argumentos? O
“golpe” é uma falácia tão intelectualmente desonesta que custo a acreditar que
adultos alfabetizados estão repetindo esse mantra por sincera ideologia. Na
melhor das hipóteses, estão praticando uma impressionante dissonância
cognitiva. Como estratégia no jogo político, essa técnica simplória de
indução/influência utilizando uma palavra chave que é repetida exaustivamente,
algo que qualquer estudante do primeiro período de publicidade aprende, pode
até surtir algum efeito imediatista, mas está fadada ao descrédito em longo
prazo. A mentira nunca granjeia respeito.
O texto acima eu postei nas redes sociais nesse final de
semana, um posicionamento que foi abraçado pela maioria dos amigos virtuais,
mas que também rendeu comentários contrários à ideia de que era errado boicotar
o filme. Como respondi lá, não podemos revidar aquilo que consideramos errado
com outra postura tão errônea quanto. É algo óbvio, parece sermão de tia da
pré-escola, mas não poderia estar mais perto da verdade. Na história do cinema,
para me ater à mesma mídia do caso citado, muitos dos melhores filmes que você
já viu e se orgulha de citar como seus favoritos, foram dirigidos por pessoas
que você não cogitaria convidar pra sua festa de aniversário.
Elia Kazan, quando foi homenageado na premiação da Academia
de Hollywood, uma boa parte dos membros da plateia, colegas de profissão, fez
questão de não aplaudir o diretor como forma de protesto. Alguns, como Richard
Dreyfuss e Sean Penn, escreveram uma nota de repúdio na imprensa. O pai de Penn
foi uma das vítimas do erro crasso cometido outrora por Kazan, ele foi um dos
perseguidos pela lista negra do macartismo, iniciado pelo senador Joseph
McCarthy, uma caça às bruxas contra os comunistas na indústria. Caso o artista
tivesse condutas consideradas simpáticas ao comunismo, ainda que não fosse de
fato comunista, ele já entrava no radar como um suspeito, o que já garantia
boicotes e falsos rumores cruéis com o intuito de destruir a carreira e quebrar
o espírito desses artistas. Muitos se suicidaram, já que não conseguiam
emprego, outros precisaram assinar produções com nomes falsos, em suma, foi um
dos momentos históricos mais vergonhosos da trajetória humana. Chaplin, por
exemplo, um dos perseguidos, teve que se exilar na Suíça. E qual o papel de
Kazan nisso? Ele foi um dos delatores mais dedicados. Mas devemos então odiar
obras-primas dele, como: “Uma Rua Chamada Pecado”, “Sindicato de Ladrões” e “Um
Rosto na Multidão”? Quer outro nome mais popular? Walt Disney. Você vai negar o
brilhantismo de suas animações, ou vai boicotar “Branca de Neve e os Sete
Anões” e “Pinóquio” na vida de seus filhos pequenos?
O pensamento lúcido, como sempre afirmo, é a única solução
em longo prazo para o povo brasileiro. A obra não pode ser prejudicada pelas
atitudes pessoais e pela ideologia política/religiosa de seus artistas. É
preciso separar o homem de sua arte. Christian Bale é considerado um cara
grosseiro, quase insuportável com seus colegas, mas não é justo negar seu
talento em sua função. Hitchcock não deixou boas lembranças para Tippi Hedren,
protagonista de “Os Pássaros”, ele foi considerado um carrasco por quase todas
as atrizes de seus filmes, com acusações até de assédio sexual, mas seria um
absurdo negar seu talento como mestre do suspense. Até mesmo você, que me lê
nesse momento e se achava imune a qualquer questionamento, pode ser um crápula
hipócrita para sua família e amigos, mas não gostaria de ter seu trabalho, pelo
qual se dedica tanto, desprestigiado publicamente por causa dessa conduta
pessoal.
Quando você adota a lucidez como cajado inseparável no seu
dia a dia, passa a enxergar todas as questões de forma diferente, passa a
perceber os tons de cinza em cenários que antes eram marcados por conflitos
extremistas, passa a valorizar mais a interpretação de texto, ao invés de
passar os olhos rapidamente numa leitura diagonal que, acima de tudo,
desrespeita a quem escreve. Não é o seu caso, caro leitor, querida leitora, mas
é usual que eu tenha a necessidade de preparar o texto, com o cuidado de ser o
mais claro possível na retórica, sabendo que terei que explicar depois o
conteúdo dele, já que boa parte dos leitores dessa geração whatsapp parece ler
pulando linhas, procurando apenas acolhimento ideológico ou buscando motivos
para extravasar a raiva.
Segure firme no cajado da lucidez, estude, entenda a
importância do contra-argumento respeitoso e boicote a própria língua (ou os
dedos) antes de agredir outrem. Posso não concordar veementemente com os
argumentos do diretor Kleber Mendonça Filho sobre a questão do “golpe”, como
deixei claro no parágrafo inicial, posso ter achado equivocado o protesto, mas
ele exerceu seu direito de protestar, admiro sua arte, aplaudo-o como cineasta.
“O Som ao Redor”, seu projeto de 2012, entrou em minha lista dos dez melhores
filmes no ano. Ainda não vi “Aquarius”, mas farei a crítica na semana de sua
estreia nos cinemas brasileiros.
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