Eu esbarrei em Joaquim Maria Machado de Assis como qualquer pré-adolescente brasileiro, nos pouco confortáveis bancos escolares, exatamente o pior lugar para se entrar em contato com o escritor. Professores de hoje ainda incorrem no mesmo erro: pedir que crianças se interessem pelo hábito fascinante da leitura com a ajuda de Machado de Assis. Visto que a obrigação por si só já é um obstáculo enorme à sede de conhecimento, adicione a esta desastrada equação uma indesculpável preguiça pedagógica passada de geração a geração.
Apenas com a ajuda de um professor apaixonado em exercer sua vocação esta opção literária pode ter alguma chance de funcionar. A literatura de Assis é brilhante, mas completamente desinteressante para uma mente ainda em formação. Além de sua estrutura densa, possui um linguajar antigo que acaba tornando a obra um diamante ainda incrustado em uma rocha, cuja lapidação somente será realizada por mentes maduras. A criança irá formular um pré-conceito de que se trata de uma experiência chata, quando na realidade foi-lhe oferecida uma piscina olímpica, enquanto ela mal havia aprendido a boiar.
Como eu já era um ávido leitor na infância, não me incomodou este primeiro contato com o autor, mas somente viria a realmente entender suas tramas quando as reli anos depois. Hoje, considero-o um dos maiores gênios da literatura mundial, incrivelmente à frente de seu tempo, com um senso de humor que continua atual e surpreendentemente ousado.
Com “Memórias Póstumas” (2001), o criativo diretor André Klotzel, que depois viria a realizar o experimental “Reflexões de um Liquidificador”, acerta ao abraçar estruturalmente a linguagem utilizada pelo escritor no maravilhoso “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), o meu favorito do autor. Júlio Bressane havia dirigido uma adaptação inferior em 1985 (“Brás Cubas”), mas Klotzel realizou o que acredito ser a definitiva versão da obra para a linguagem cinematográfica, com excelente timing cômico e atuações precisas, com destaque para o minimalismo fascinante de Sônia Braga e um Reginaldo Faria estupendo como o protagonista em sua fase adulta.
O rompimento com a narração linear da época é bem explorado, com soluções inteligentes para a inclusão do personagem, seguindo fielmente o livro, inclusive nos diálogos, talvez o único ponto fraco, pois não soam naturais. O protagonista fala diretamente com o público, exatamente como no livro, estabelecendo uma relação de cumplicidade similar àquela que existia entre o escritor e seus leitores. Alguns personagens e situações são cortados da trama, como Cotrim e a irmã do protagonista, assim como o reencontro com Eulália ao final da vida, favorecendo maior dinamismo e um ritmo mais fluente e condizente com a linguagem cinematográfica.
Um ponto negativo é a equivocada utilização do importante personagem Quincas Borba, que no livro é essencial na evolução de Brás Cubas, limitado a ser um alívio cômico descartável. E para quem gosta do livro, recomendo que veja “Memórias Póstumas” em sessão dupla com uma pérola do cinema nacional que poucos conhecem, “Viagem ao Fim do Mundo“, dirigido por Fernando Cony Campos em 1968, que usa como inspiração em algumas sequências os capítulos: “O Delírio” e “O Sermão do Livro”.
Machado tinha em mente leitores participativos, que questionassem cada enxuto capítulo, utilizando os espaços vazios e o subtexto como terreno fértil para sua imaginação. Enquanto grande parte da literatura empreende páginas preciosas aos detalhes na mobília da casa dos personagens, por exemplo, entregando um livro para colorir já preenchido aos leitores, nosso aniversariante de hoje recusava-se a instigar a preguiça intelectual naqueles que lhe dedicassem atenção. Ler suas páginas é acompanhá-lo, ser cúmplice de seus pontos de vista e perceber-se imprescindível nesta experiência, ele se comunica diretamente com quem o lê.
Muitos escritores tratam seu público como um patrão a um empregado, mas Machado de Assis acolhe o leitor como um convidado de honra em sua casa.
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