Ave, César! (Hail, Caesar! – 2016)
Eddie Mannix (Josh Brolin) vive resolvendo os problemas das celebridades de um estúdio de cinema dos anos 50. Para piorar o seu dia, o astro (George Clooney) de um filme é sequestrado vestido com as roupas de seu personagem. Se o estúdio não pagar o resgate, será o fim do ator.
Livros como “Moviola”, de Garson Kanin, e “Fedora”, de Thomas Tryon, conduziam o leitor para as engrenagens da indústria cinematográfica norte-americana da era de ouro dos grandes estúdios, desconstruindo habilmente a fábrica de mitos. Com “Ave, César!”, os irmãos Coen arriscaram este mesmo nicho de público, aqueles cinéfilos dedicados com estofo cultural no tema, conscientes de que muitos espectadores poderiam se sentir como penetras em uma festa de desconhecidos.
Esta coragem autoral, desestimulada naturalmente pelas exigências de mercado, confirma a importância desta dupla no cenário atual pós-apocalíptico de baixa criatividade em Hollywood. O roteiro é ambientado na década de cinquenta, período fascinante em que a teatralidade dominava todos os setores da sociedade, traçando um paralelo inteligente dessa realidade com o elemento essencial da glorificada farsa exibida na tela grande da sala escura.
O espetáculo dos épicos bíblicos, recurso mais eficiente dos produtores da época na tentativa de retirar jovens e adultos da frente dos televisores, coerentemente toma papel de destaque na trama, com a simbologia do subtítulo: “Um Conto de Cristo”, copiado de “Ben-Hur”, representando a alienação ideológica daqueles que movimentam financeiramente o negócio.
Ao comandar uma reunião em seu escritório com dignitários de várias vertentes religiosas, estranhos sem autoridade naquele templo, para checar se estão sendo respeitados os aspectos teológicos da obra, o esforçado executivo não consegue esconder a estupefação, os líderes se mostram incapazes de chegar a um acordo sobre os detalhes mais simples a respeito da figura de Jesus.
As discordâncias são radicais, o tom das vozes aumenta exponencialmente na discussão dominada por frases feitas e conceitos memorizados, fica evidente que estamos diante de personagens tão caricatos quanto os que nascem das mentes dos roteiristas. A teatralidade no sistema religioso retorna nos encontros do executivo com o padre na cabine de confissão, na forma displicente com que o sacerdote redime os pecados ministrando “quatro Ave-Marias”, como doses de um placebo homeopático.
A doçura sorridente que a nadadora exibe em suas coreografias aquáticas que encantam as famílias, símbolo de inocência comercializada, ilusão que se desfaz após a filmagem ser interrompida, revelando uma personalidade grosseira, uma atriz cínica que esconde a gravidez com a ajuda do estúdio por não saber quem é o pai. A teatralidade que forja imagens mentirosas alimentadas pela indústria da fama, representada pelas gêmeas jornalistas que disputam o furo da notícia.
Ao fazer delas irmãs idênticas, o roteiro evidencia a ausência de escrúpulos que move esta atividade. O sequestro do ator veterano pelo grupo de roteiristas comunistas, confortáveis em um salão elegante, ressaltando a teatralidade política, a farsa de um movimento que utiliza o proletariado como bengala até conquistar o poder. Um deles é encontrado dormindo ao tentar ler uma revista intitulada: “Vida Soviética.”
A paranoia que possibilitou o macarthismo é trabalhada também na absurda sequência do submarino, uma solução visual divertida para mostrar como era ingênua a forma de pensar do povo, amedrontado por uma ameaça tão teatral quanto aquela lua pintada no cenário do filme do vaqueiro cantor, ou a antinatural dança dos marinheiros sobre as mesas do bar.
A vida real é fundamentada em fantasias tão impressionantes quanto as mirabolantes ideias que movimentam a indústria de cinema.
* Texto escrito para o catálogo da Retrospectiva “Irmãos Coen – Duas Mentes Brilhantes”, exibida de 16 a 31 de Agosto de 2016, no Cine Sesc Palladium, em Minas Gerais.
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