De Vento em Popa (1957)
Num transatlântico, Chico (Oscarito), um falso taifeiro e Mara (Sonia Mamede), sua parceira numa dupla sertaneja, querem participar de um show a bordo. O show é promovido por Sérgio (Cyll Farney), que volta dos Estados Unidos onde fora estudar energia nuclear a mando do pai, mas que acabou se interessando mesmo em aprender bateria e música popular. Seu sonho: montar uma boate. Tentando iludir o pai e realizar seu sonho, Sérgio convence Chico a se passar por um famoso professor de energia nuclear, e Mara, sua assistente.
“De Vento em Popa”, dirigido por Carlos Manga, não é simplesmente a melhor produção da Atlântida, eu o considero um dos melhores filmes nacionais de todos os tempos e uma das melhores comédias musicais da história do cinema. É uma pena que nossa indústria não valorize a memória, e que todo dinheiro que foi destinado à preservação nas últimas décadas pareça ter sido desviado, pois tenho certeza que se esse trabalho fosse restaurado iria cair nos braços do público jovem atual.
A imagem e, principalmente, o som, muito ruins da cópia que é comercializada, comprovam o descaso vergonhoso da nação com a própria cultura. Muitos celebram a parceria entre Oscarito e Grande Otelo, mas creio que não supera a química entre Oscarito e Sonia Mamede.
O que me impressiona na trama é como ela utiliza diversas vertentes cômicas com a mesma eficiência, trabalhando o leitmotiv do contraste entre o erudito e o popular, algo que já se mostra presente na trilha sonora dos créditos iniciais, alternando um estilo clássico instrumental com o samba mais despretensioso. De maneira didática, exemplifico abaixo com sete variações:
1) Humor que interage entre cenas pela edição: A montagem em que Dóris Monteiro se olha no espelho e se sente feia, que segue para a cena em que um avaliador constata a necessidade de reparos no local da festa (“realmente está um pouco maltratada”).
2) Humor na subversão de construção de personagem: Sonia Mamede discute com o pianista italiano na língua dele, surpreendendo o arrogante maestro. O roteiro subverte o tipo caricatural nordestino que havia sido estabelecido desde a apresentação dela como clandestina no navio. E, na mesma cena, logo depois de Monteiro cantar “Chove Lá Fora”, Mamede retoma o sotaque carregado com um hilário elogio: “Até que tu tem um gargarejo positivo”.
3) Humor como elemento crítico: A empregada da mansão argumentando sobre o que é uma entrevista jornalística (“Entrevista? Entrevista é tudo aquilo que a gente diz e não sai publicado”).
4) Humor físico: A empregada bêbada chocando a famosa cantora lírica, vivida por Zezé Macedo, lutando para se manter de pé. Gag similar seria vista anos depois em “Um Convidado Bem Trapalhão”, de Blake Edwards, e até no francês “A Gaiola das Loucas”, de Édouard Molinaro.
5) Humor silencioso: Sequência genial entre Oscarito e Zezé Macedo, ignorando que dividem o mesmo quarto. A brilhante execução me remete à clássica cena do espelho humano em “Duck Soup”, dos Irmãos Marx.
6) Humor puramente verbal: O roteiro entrega uma cacofonia de tom popular, vulgar, como “O álbum da minha vida”, mas também brinca superestimando o público, uma piada que valoriza o estofo cultural, como quando Macedo aborda sua experiência na ópera “La Traviata”: “Que tuberculosa linda que eu fiz!” O público de hoje provavelmente não compreenderia esta piada.
7) Humor musical: A letra de “Mocinho Bonito”, cantada por Monteiro, aborda com humor a hipocrisia dos que tentam se passar por cultos, elegantes, construindo uma fachada frágil, um verniz que se desfaz ao primeiro sinal de confronto intelectual. A música encerra o arco narrativo dos personagens, dando lugar na sequência para o grand finale, a apresentação de Oscarito como Melvis Prestes, paródia impagável do rei do rock norte-americano, cantando “Calypso Rock”.
Ao optar inteligentemente por não forçar a mão na caricatura, solicitando que Carlos Imperial ensinasse ao ator os movimentos da dança, Manga entrega um retrato fiel da explosão do gênero na década de cinquenta, com a câmera acompanhando os passos frenéticos de Mamede e Oscarito, com direito a bola de chiclete e muitas piruetas. Elvis uniu o erudito e o popular, ninguém melhor que ele para ser homenageado nesse desfecho.
Ao contrário de muitas produções nacionais da época, todas as músicas são excelentes e são muito bem inseridas na trama. Perceba a beleza na fotografia elegante da sequência romântica à meia-luz, ao som de “Dó Ré Mi”, de Fernando César, entoada delicadamente por Dóris Monteiro acompanhada ao piano por Cyll Farney. É o momento mais bonito já capturado nas produções da Atlântida.
Oscarito e Mamede dão show de carisma em “Tem Que Rebolar” e “O Delegado no Coco”. Para finalizar, ouso dizer que nenhum filme do Cinema Novo conseguiu exibir, de forma tão corajosa e, acima de tudo, eficaz, críticas sociais como as propostas por Manga nesta comédia popular.
Oscarito cofiando sua barba feita de pelo de rabo de cachorro, mantendo seu disfarce de cientista aristocrático, acerta o alvo com mais pungência do que todos os exercícios umbilicais dos diretores nacionais usualmente mimados pelos pseudointelectuais.
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