Críticas

Analisando a metáfora de “A Mosca”, de David Cronenberg

A Mosca (The Fly – 1986)

Como agradeço hoje aos meus pais por não terem me criado, quando criança, afastado dos filmes de terror. Sempre me ensinavam que aquilo era tudo maquiagem e truques, o horror não era real, simples lições que todos os pais deveriam legar aos filhos.

Eu assisti a “A Mosca” pela primeira vez aos cinco anos, mas poderia dizer que não plenamente, já que passava a maior parte do tempo com os olhos fechados. Perguntava para minha mãe: “Já passou a cena?” Se ela dissesse que sim, somente então eu abriria os olhos. Medo misturado às gargalhadas que dávamos, com cada imagem medonha que aparecia subitamente na telinha.

Depois de várias reprises foi que consegui realmente assistir ao filme. Mas eu me recordo vividamente o quanto me perturbava, nos anos seguintes, durante boa parte da minha adolescência, ligar a televisão de madrugada e dar de cara com o Jeff Goldblum.

Este é um dos poucos filmes do gênero que estabelecem o tom de angústia logo nos créditos iniciais, com a ajuda da trilha incrível do Howard Shore, você se sente impelido emocionalmente a desligar a televisão pelo desconforto que sabe que irá sentir, acho que só “O Exorcista” pode ser comparado neste quesito.

David Cronenberg é o responsável por esta refilmagem que é superior em todos os aspectos ao original, “A Mosca da Cabeça Branca”, de 1958.

A degeneração do corpo, única certeza humana, a consciência da finitude, o falecer um pouco a cada dia, conceitos que são incorporados metaforicamente na trama.

Seth Brundle, com a racionalidade típica do cientista, conclui já em estado avançado de transformação que é um inseto que sonhou ser homem, no desespero para não perder sua sanidade, abdicou de sua condição como homo sapiens na busca por encontrar alguma lógica em sua experiência.

O seu guarda-roupa evidencia o desinteresse prévio pelos rituais de convívio social, várias camisas e calças idênticas, ele valoriza o intelecto, aquilo que não se pode exibir facilmente. Como deve ser desanimador para alguém assim ter consciência plena do natural desgaste físico e mental.

Ao sentir os efeitos iniciais da sua fusão com a indesejada mosca na máquina de teletransporte, maior força muscular, maior resistência, ele euforicamente toca a possibilidade de, como cientista, entregar ao mundo a resposta definitiva contra as limitações corpóreas.

O que era uma tentativa de conquistar glória profissional com a máquina acabou se tornando uma realização pessoal, a arrogância emotiva sobrepujou a racionalidade do estudante dedicado.

O motivo que o fez se precipitar e que causou o problema foi o ciúme que ele sentiu pela namorada jornalista, vivida por Geena Davis, quando descobriu que ela estava mantendo um relacionamento com o seu editor.

Uma atitude impulsiva enquanto estava bêbado, ser cobaia em seu experimento, aliada a uma situação inesperada, a entrada da mosca na máquina, uma equação nascida da negação de sua personalidade e que, como revide da natureza, resultou em tragédia.

Um momento especialmente comovente ocorre no terceiro ato, com a subtrama da gravidez da jornalista. Ela teme o ser que está se formando em sua barriga, em seus pesadelos ela dá vida a um monstro, mas encontra a resistência de Brundle ao optar pela eliminação do bebê, ele enxerga naquele ser o seu único legado, a lembrança do que ele um dia representou.

O bebê terá chance de nascer? O filme inteligentemente não entrega ao espectador esta resposta, algo que foi equivocadamente destruído com a tola sequência.

A lenta transição de Brundle para Brundlemosca, com o devido mérito à equipe de efeitos de Chris Walas, coloca o personagem em confronto com elementos orgânicos naturais, como o vômito e o suor, que são reprimidos ou minimizados nos rituais sociais, rejeitados pelo verniz de ilusória elegância que segrega seres biologicamente idênticos.

Ele, que até então desprezava o corpo e valorizava apenas a mente, passa então a se orgulhar da complexidade de sua composição física, chegando a depositar suas orelhas e unhas perdidas na metamorfose em uma espécie de altar, o que ele chama de Museu de História Natural de Seth Brundle.

Como alguém que vivencia prematuramente a velhice, ele sofre por se manter lúcido e mentalmente ágil, mas preso em uma matéria que se decompõe rapidamente.

Esta é a metáfora do roteiro, o real terror que todos nós, com sorte, iremos um dia conhecer. Por mais que lutemos para manter nossas mentes ativas, estamos condenados à degradação do corpo.

Octavio Caruso

Viva você também este sonho...

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  • Relembrei do filme quase todo, é mesmo uma grande lição. Assisti há muito tempo, é um filme extremamente forte, tem cenas repugnantes, porém necessárias. Você analisou muito bem, ali está a nossa trágica degeneração física, enxerguei isso melhor agora, com as lentes da sua análise.

  • Eu tinha 14 anos quando fui assistir à estreia no cinema. Me impactou tanto na época a ponto de ter pesadelos, mas é um filme interessantíssimo que, até hoje, eu gosto de rever. Sua análise com relação ao drama da mente ágil presa num corpo que já não responde como se gostaria ou deveria foi certeira. É realmente um drama universal ao qual todos estaremos sujeitos mais cedo ou mais tarde.

  • 20/02/2023 Assistindo aqui o filme Jurassic park de 1993 lembrei desse ator incrível do filme a mosca, eu tbm tinha 5 anos na época desse filme e assistia de boa, esse ficou marcando devido ser meu primeiro filme de terror que assisti...

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