Críticas

“Cantando na Chuva”, de Stanley Donen e Gene Kelly

Cantando na Chuva (Singin’ in the Rain – 1952)

Os musicais da época de ouro de Hollywood eram alicerçados nos pilares da alegria, injetando esperança em um período complicado, mas poucos são os filmes que sobreviveram inabaláveis ao teste do tempo e, mais que isso, raros são os que conseguem transmitir o sentimento de forma tão espontânea quanto “Cantando na Chuva”, um musical perfeito.

Se a sequência ao som de “Make’em Laugh” presta homenagem à função da arte enquanto elemento que inspira o indivíduo a atravessar todos os obstáculos naturais da existência, com Donald O’Connor transcendendo as limitações físicas do cenário, mostrando que é possível fazer rir até com o mais aparentemente irrelevante objeto de cena, a longa sequência “Broadway Melody” faz reverência à capacidade impressionante da arte se adaptar à necessidade emocional/financeira do artista, reciclando uma ideia que não estava funcionando, o drama mudo “Cavaleiro Duelante” se torna o musical “Cavaleiro Dançante”.

Alguns textos apontam equivocadamente que são treze minutos tonalmente diferentes do todo, que quebram o ritmo da narrativa e não se conectam com a essência da trama.

O que importa não é a história de amor entre o ator quebra-galho e a musa que o inspira a ganhar confiança em seu trabalho, o romance é apenas um ingrediente que torna a experiência ainda mais deliciosa, o filme de Stanley Donen e Gene Kelly essencialmente aborda a beleza da magia do cinema, algo que vai além da simples encenação da transição do mudo para o falado.

Quando Lockwood (Kelly) decide declarar seu amor por Kathy (Debbie Reynolds), ele o faz sob as luzes artificiais de um estúdio, manipulando cada detalhe para criar o clima perfeito. “Broadway Melody” é uma adaptação altamente estilizada das agruras do protagonista, uma espécie de “versão cinematográfica” do próprio filme, realçada na utilização propositalmente exuberante do Technicolor.

Ao encontrar a linda Cyd Charisse, com o corte de cabelo que remete à Louise Brooks, acompanhada de capangas típicos dos filmes policiais da década de trinta, o jovem sonhador se depara com a simbologia de Hollywood, a dança é a sedução do inocente.

Ele atravessa o teatro burlesco, o vaudeville e o Ziegfeld Follies, etapas importantes em seu aprendizado artístico, mas acaba reencontrando a simbologia da fábrica de sonhos exatamente quando todo aquele universo estilizado já ganhava tons pasteis, representando o abraço do comodismo profissional.

A dança dos dois se torna mais refinada e íntima, em um estúdio, mas desprovido da artificialidade excessiva, o movimento do tecido branco representando o profissional às voltas com a inatingível perfeição artística.

O desfecho da sequência é muito bonito, ele é surpreendido pela chegada de um jovem sonhador, exatamente como ele outrora, inocente, inseguro, fadado a se frustrar com a realidade dos bastidores de Hollywood, mas valente o suficiente para correr os riscos. E, ao vislumbrar aquela fagulha de genuíno amor pela arte, ele se vê novamente tomado pela empolgação profissional.

Estes momentos já bastariam para que a obra fosse celebrada, mas ela ainda nos presenteia simplesmente com a cena mais importante na história do gênero, a representação sublime da súbita felicidade que transforma uma torrencial chuva em uma ensolarada manhã.

A superação dos problemas é o que impulsiona Lockwood naquele momento, a descoberta do amor correspondido por Kathy e a conquista da autoconfiança artística, em suma, os obstáculos da vida como aparentemente intermináveis gotas de chuva cuja queda ele faz questão de não impedir.

Oferecendo a um desconhecido o seu guarda-chuva, ele segue despreocupado rumo aos próximos problemas que precisará enfrentar. O personagem alcança a maturidade.

Octavio Caruso

Viva você também este sonho...

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