O grande problema do Oscar é ter se tornado, aos olhos do
mundo, o símbolo maior de tudo o que representa o cinema. Na realidade, a
premiação não diz quase nada sobre a beleza da sétima arte. O brasileiro médio,
aquele que não valoriza filme como algo mais que entretenimento fútil,
aproveita a farra que antecede o evento, participa de bolões, chega até a
discutir na roda de amigos sobre os filmes indicados. No dia da cerimônia, na
falta de estofo cultural sobre o tema, ele perde mais tempo analisando os vestidos
no tapete vermelho, as gafes cometidas, a plástica no rosto da atriz, os memes
nas redes sociais, enfim, tudo o que não é cinema. Quase sempre, sem interesse
genuíno, dorme antes da metade da exibição.
O tema nesse ponto já perdeu o valor como status de
elegância, aquilo já é assunto de ontem, não irá nem comentar no trabalho. Como
analogia, perceba a forma como a Rede Globo trata o evento, transmitindo no dia
seguinte um compacto que elimina discursos de agradecimento, edita segmentos,
extrai toda a emoção, entregando um resumo medíocre preenchido de opiniões
vazias. A emissora está apenas respondendo ao estímulo de grande parte do povo.
A sétima arte volta a ser, para esse brasileiro, simples futilidade que ele
adquire nas bancas dos camelôs, para assistir quando não tiver nada melhor na
televisão, entretenimento inofensivo para passar o tempo, enquanto aguarda a
chuva estiar. Um longo ano irá se passar até que ele volte a se interessar.
Eu sou apaixonado por filmes desde os quatro anos de idade,
meu primeiro livro é intitulado: “Devo Tudo ao Cinema”, então não consigo
compreender uma cerimônia que estabelece competição entre artistas envolvidos
em roteiros com propostas totalmente diferentes, quase sempre, antagônicas. Não
vejo cinema como uma corrida de cavalos, creio que o Oscar deveria ser uma
celebração anual da indústria, ao invés de um jogo de azar. Mas, claro, o
elemento da disputa é exatamente o que atrai essa parcela expressiva do
público. E Oscar é um entretenimento televisivo movido por lobby que necessita
de bons índices de audiência.
Essa máquina movimenta os negócios, aumenta e diminui
salários da noite para o dia, promove redenções e empurra para o ostracismo, em
suma, não tem valor algum enquanto parâmetro de qualidade. Boa parte dos
projetos selecionados estreiam em períodos mercadologicamente propícios. Os
produtores que investem na premiação colocam seus atores nos talk-shows
noturnos e nos programas matinais, toda demonstração de simpatia é bem-vinda,
sorrisos que simbolizam cifrões, qualquer possibilidade de polêmica é afastada,
faz parte do jogo. Mel Gibson, por exemplo, conhecido por ser combativo
ideologicamente, apareceria até rindo de fratura exposta nos últimos meses.
Poderiam até ter xingado a mãe dele, que o australiano mostraria os dentes. Ele
não é bobo, sabe que a indústria está oferecendo mais uma chance. O filme é o
que menos importa na equação do Oscar.
A seleção de filmes nesse ano foi qualitativamente superior,
um reflexo da controvérsia racial despertada na cerimônia passada. A justiça
foi feita, algo raro, “Moonlight” é impecável em todos os sentidos, porém,
creio que venceu como parte do ataque aberto que a indústria está desferindo
contra o presidente Trump. A Academia escreveu certo por linhas tortas. O texto
defendido pelo apresentador Jimmy Kimmel, opção equivocada que deu o tom morno
da noite, deixou clara já nos primeiros momentos essa linha política. E, apesar
de poucas homenagens rasas aos clássicos, estamos testemunhando uma tentativa
agressiva de renovação, o espetáculo é direcionado à satisfação imediatista dos
espectadores adolescentes, um tiro no pé. O início musical, com aquela animação
artificial de festa infantil, os doces caindo de pequenos paraquedas na
plateia, a tola pegadinha nada orgânica com os turistas “inesperados” (tão
crível quanto os reality shows televisivos), o desleixo supremo ao inserir a
imagem de uma produtora viva no segmento “In Memoriam”, a gafe absurda no
desfecho, tudo leva a crer que estamos vivendo o crepúsculo criativo dessa
brincadeira cara.
Warren Beatty jogou a bomba na mão da colega, Faye Dunaway
não teve culpa, tiros argumentativos para todo lado, a mídia busca agora
problematizar cada detalhe, manchetes sobre maus-tratos do produtor com o astro
idoso, celebração da atitude do mesmo produtor que tirou de letra o vexame,
Emma Stone imaturamente incitando teoria da conspiração nos bastidores, enfim,
muito barulho para nada. Um simples envelope errado expôs a ferida, os deuses sangram,
o ídolo é de barro. O constrangimento, o gosto amargo ao final, espero que isso
sirva como ensinamento. O cinema não merece ser reduzido à essa desajeitada
festa anual fracamente roteirizada. Viva intensamente a realidade, não aplauda
a caricatura.
Sobre as premiações, creio que se confirmou a tendência
“coração de mãe” da Academia. Ninguém sai triste, todos recebem, no mínimo, um
respeitoso tapa nas costas. O filme não precisa nem ser bom, “Esquadrão
Suicida”, por exemplo, recebeu a estatueta por Maquiagem e Penteados. Os
adolescentes ficam felizes, comentam no Twitter, isso é o que importa. A
fotografia impressionante de James Laxton (“Moonlight”) perdeu para a obviedade
acachapante de Linus Sandgren (“La La Land”), decisão que só pode ter sido tomada
pelos jurados em uma disputa de palitinhos. Até imagino a discussão na reunião
da cúpula. Na dúvida, Melhor Trilha Sonora, entrega obviamente para o único
filme musical, ainda que a soma de suas composições bonitinhas não resvale
sequer na qualidade artística do melhor disco do Guilherme Arantes.
O trabalho de Nicholas Britell (“Moonlight”), primoroso em
suas nuances sonoras, merecia o justo reconhecimento. Melhor Filme Estrangeiro,
o alemão “Toni Erdmann” é superior, mas vamos dar mais um golpe no Trump? Ah,
entrega para o iraniano “O Apartamento”, para garantir o discurso emotivo de
protesto. Se o diretor se recusar a comparecer, melhor ainda! O roteiro de “O
Lagosta” é o único realmente merecedor, uma proposta verdadeiramente ousada,
mas “Manchester à Beira Mar” tem mais cara de ser importante, aquele
pretensiosismo dramático de roupa nova do rei. Pouco importa que a execução do
roteiro seja ruim, com a trilha sonora excessivamente intrusiva banalizando a
experiência. Temos que distribuir os afagos, não queremos rostos tristes na
volta para casa.
Viola Davis merece todos os elogios por seu trabalho no
teatro filmado “Um Limite Entre Nós”, assim como Denzel Washington, um dos
maiores atores de sua geração, que precisou engolir seco e aguentar Casey Affleck
agradecer o prêmio. Emma Stone é adorável em “La La Land”, mas precisa comer
muito arroz e feijão para poder ser comparada à Isabelle Huppert e Meryl
Streep. Mas o público adolescente sequer viu “Elle”, o que importa é satisfazer
a garotada. O Melhor Diretor não comandou o Melhor Filme, algo que nunca
compreendi bem. Como você pode executar o melhor trabalho na cozinha, sem
preparar o melhor prato do restaurante? Damien Chazelle, jovem talento
promissor. Todos os seus competidores são melhores que ele na função.
Denis Villeneuve, Mel Gibson, Barry Jenkins e Kenneth
Lonergan. Entregue uma câmera na mão deles e verá como conseguem operar mágica
em diversos gêneros. Chazelle faz filmes dinâmicos, fast food inofensivo, “La
La Land” caiu no gosto dos jovens nas redes sociais, não pensem muito,
entreguem a estatueta para ele. Melhor Filme? Não, temos que abrir uma exceção,
não podemos desperdiçar a atenção dos olhos do mundo, vamos matar dois coelhos
com uma cajadada só: atacamos Trump e respondemos aos que nos criticaram ano
passado pelo “Oscars So White”. A justiça ser feita, a premiação por mérito da
obra é acidente, ponto fora da curva. É triste, mas é assim que a banda toca.
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