Neste especial “Woody Allen”, começo sempre com um texto cômico, no estilo do homenageado, um dos meus ídolos nesta arte.
“Euclides levantou da cama, admirou a vista da janela, agradeceu à chuva por lavar seu carro, tomou um shot de uísque para despertar seu organismo, desceu a escada em direção à cozinha, percebeu que seu cão havia fugido novamente, discou o número do vizinho, constatou que não havia ninguém em sua casa, piscou duas vezes os olhos para umedecer as vias lacrimais, pensou por um momento em como seria interessante o conceito da Terra plana para quem tem pés chatos, depois levantou a mão direita na direção do rosto e afastou com delicadeza o mosquito que tencionava se alojar em sua pele para sugar…”
O editor não conseguia acreditar naquilo que estava lendo, ele jogou os originais do autor na mesa e pediu para sua secretária entrar em contato com o rapaz imediatamente. A reunião foi marcada para aquela tarde, o destino literário de Ashton Moser estava por um fio.
Ashton Moser, pseudônimo de Cícero Adamantino, entrou no escritório com a segurança de um narcisista em uma sala de espelhos, ele representava o futuro da nação, o jovem que trocou uma carreira promissora na loja de calçados por uma possibilidade de inserir seu nome dentre os imortais das letras. O único obstáculo era sua capacidade impressionante de ser desprovido de qualquer talento na área. Ele se sentou e aguardou os elogios.
– O seu herói se chama Euclides? – O editor tentou iniciar no amor.
– Exatamente. Um espião à serviço secreto de sua majestade…
– O sabiá? – O corte debochado do seu superior perceptivelmente não o agradou.
– Como? Não estou entendendo.
O editor se levantou, contendo seu impulso de esmurrar o nobre mentecapto, trabalhando cada palavra com a leveza de um boxeador.
– É pedir demais que você se atenha ao cenário nacional? O seu texto é chato porque você quer passar uma imagem de algo que não conhece, nem sequer estuda o tema. Você é tipo aquele diretor de cinema metido a culto que filma uma árvore ao contrário por cinco minutos e chama isso de arte. Eu não vou te enrolar, o seu texto é insuportável!
– Eu já te contei do meu outro projeto engavetado? – A animação do autor surpreendeu o editor.
– Você escutou uma palavra do que eu disse?
O jovem se levantou também, aquele feedback negativo não parecia ter abalado sua confiança.
– Olha, imagine isso, uma história que vai agarrar o público pelo bolso…
– Diga, Cícero, não me faça sofrer por antecipação.
– Uma mulher, dois homens, um corretor de imóveis…
– Ok, já escutei o suficiente. Chega! Leve seus originais e, por favor, pense no que eu te disse. Você precisa se alimentar, está magro demais, precisa tomar um sol, sair um pouco e se divertir.
– Eu tentei começar um treino na academia de ginástica.
– É isso! Esse é o caminho. Não está treinando?
– Eles exigiram um exame físico, eu disse que já havia passado por uma bateria de exames médicos de vídeos de ASMR, a personal trainer não aceitou…
O editor, prezando por sua sanidade, abriu a porta do escritório e esperou o rapaz abandonar o local. Aquele era o fim da promissora carreira literária de Ashton Moser, o mito nacional, a lenda.
Hannah e Suas Irmãs (Hannah and Her Sisters – 1986)
A filha mais velha de um casal de artistas, Hannah (Mia Farrow) é uma dedicada esposa, mãe carinhosa e atriz de sucesso. Uma leal defensora de suas duas confusas irmãs: Lee (Barbara Hershey) e Holly (Diane Keaton), ela é também a espinha dorsal de uma família que parece se ressentir de sua estabilidade quase tanto quanto dependem da mesma.
Inspirado em “Fanny e Alexander”, de seu ídolo Ingmar Bergman, Allen trabalha a evolução de um núcleo familiar através de três celebrações anuais, pela ótica do leitmotiv defendido em cena: “O coração é um músculo muito, muito elástico”.
Na cena mais bela do filme, ele captura aquela que considero a melhor explicação para a vida. Seu personagem hipocondríaco acreditava estar prestes a falecer, entristecido também pela impossibilidade de sua esposa engravidar, sem paixão com relação ao futuro, então ele caminha pela cidade sem rumo por algumas horas, guiado apenas pela centelha de esperança que se recusa a ceder perante a doença fatal que acredita ter. Ele chegou a apontar o cano de um rifle para a própria cabeça, acreditando não haver motivação alguma em sua existência. Nada parecia fazer sentido, até que ele entra numa sala de cinema e, mesmo naufragando em um oceano de depressão, ele se surpreende sorrindo com uma comédia clássica dos Irmãos Marx.
O personagem conclui que, mesmo a vida sendo um passeio numa montanha-russa de mais baixos que altos, aqueles breves momentos de conforto e alegria valem o preço do ingresso. E o elemento desconhecido inerente a todos nós, que o perseguia com tantos questionamentos, nunca seria plenamente revelado, independentemente do quão insistentemente perguntasse. Ele então relaxa na poltrona, com todos os seus conflitos internos sucumbindo ao peso daquele leve entretenimento, e se permitiu a satisfação da diversão. O ânimo adquirido naquela sessão motivou seu espírito a enfrentar mais um dia.
E, um ano depois, envolvido em uma relação muito mais feliz com outra mulher, num ato inesperado do destino, ele se emociona por ter realizado o sonho de ser pai.
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