Em mais uma entrevista exclusiva para o “Devo Tudo ao Cinema”, converso com o amigo e colega roteirista Paulo Cursino, responsável pelo texto das melhores comédias nacionais dos últimos anos.
C – O processo de criação foi prazeroso desde o início. Trabalhoso como sempre, mas divertido. A proposta do Tuba trazia uma novidade, um frescor, que me fez entrar no projeto logo de cara. Uma comédia de costumes, politicamente incorreta, sobre divórcio, no interior rico de São Paulo, com dois grandes atores, era algo que não dava para dizer não. Se fosse mais um projeto de comédia bem-comportada que se passasse no Rio de Janeiro eu certamente não aceitaria, já faço as minhas. Sempre digo que o roteirista é escravo da história ou de uma grande ideia. Ou a gente é fisgado pelo conceito ou nada rola. Saí do nosso primeiro encontro já cheio de cenas e referências na cabeça.
Entrei pela ousadia e deu muito certo. No começo, bem no início, contei com a parceria da Angélica Lopes para fechar a história. Mas da abertura do roteiro para a frente toquei sozinho, sempre batendo bola com o Tuba e, mais tarde, com o Pedro Amorim. Pedro enriqueceu muito o projeto trazendo um tom meio irmãos Coen aos personagens já em algumas sequências no papel e depois no set. Foi dele a ideia, por exemplo, dos personagens terem sotaque um pouco mais carregado. O que é irônico, pois tanto eu quanto Tubaldini somos do interior de São Paulo, temos ainda um pouco sotaque, e nunca havíamos pensado nisso. Foi um acerto. A entrada de Murilo Benício também ajudou ainda mais a história e os personagens funcionarem e seus toques foram fundamentais para o aprimoramento do texto.
O mais importante para um roteiro evoluir como se deve aconteceu aqui: afinação criativa, outra tecla na qual bato sempre. Ninguém ali era amigo de infância, ninguém ali havia trabalhado junto antes, mal nos conhecíamos, e ainda assim o material saiu coeso. O roteiro poderia ter virado um Frankenstein, mas não aconteceu. A qualidade da história e a minha experiência ajudaram, claro, sou macaco velho, mas se não fosse o talento do Tuba como produtor, o projeto poderia ter desandado. Foi um acerto do início ao fim.
O – A comédia nacional, apesar de ir muito bem nas bilheterias, segue sendo desprezada por grande parte da crítica. Fazer rir é, sem dúvida, a tarefa mais difícil para quem escreve. Eu, como crítico, com base em meus critérios enalteço qualidades e aponto problemas, essa é uma das funções do meu trabalho. Mas, como também atuo por trás das câmeras, respeito sobremaneira o esforço de todo profissional que se dedica na área neste país. Como você enxerga a relação entre os críticos e filmes populares?
C – A relação da crítica com os filmes populares no mundo inteiro sempre foi meio problemática, e sempre será, e até entendo os motivos. O problema é que no Brasil ela consegue ser ainda pior. Obviamente há críticos que conseguem se distanciar e entender o que a gente faz. Mas ainda são poucos. A ampla maioria ainda peca pelo elitismo e pela má vontade pura. O que mais me impressiona é ver como nossa crítica não evolui. Se déssemos ouvidos aos nossos críticos talvez hoje nem soubéssemos os nomes de Grande Otelo e Oscarito, Zé do Caixão e Mazzaropi seriam personagens de folclore, e Anselmo Duarte não seria nem nota de rodapé nos livros de cinema.
Se nossa crítica fosse séria já teria colocado Hassum no panteão dos nossos grandes, mas talvez só façam isso daqui a, sei lá, vinte anos. Fazer o quê? Erram hoje da mesma forma que erraram no passado. Por sorte, para nós que fazemos comédia, a crítica é cada vez mais irrelevante. Fiz quase trinta milhões de bilheteria tomando porrada o tempo todo e hoje até me divirto com isso. Quando edito um filme eu sempre brinco dizendo que estou afofando o travesseiro para o bonequinho do Globo dormir. Enxergo essa relação com muita tranquilidade, sem mágoa ou ansiedade. Já perdi as esperanças de que ela mude um dia.
O – Eu me lembro que fui um dos poucos críticos que elogiaram “De Pernas Pro Ar” e “De Pernas Pro Ar 2”. Resgato aqui um trecho da minha crítica postada na semana de estreia do segundo: “O filme tem tudo para agradar e fazer uma boa bilheteria. E o que é melhor: merecidamente. Basta agora o público aprender a discernir entre o que é bom e ruim, passando a exigir mais dos nossos realizadores”. Dava para perceber que os roteiros eram pensados por alguém com estofo cultural cinematográfico. Qual é a sua bagagem como apaixonado por cinema? Quais nomes você tem como referências no gênero da comédia (mundial e nacional)?
C – Nem sempre o que a gente faz tem a ver com as nossas inspirações. Meu gosto é clássico, para não dizer antiquado até. Tenho até hoje Billy Wilder como referência máxima de construção de cenas e de diálogos. Vi pouca coisa de Lubitsch, mas tudo que eu vi, curti. Amo quase tudo que vi de Preston Sturges e Leo McCarey. Mas é claro que minhas referências passam por tudo o que veio depois, de Jerry Lewis a Blake Edwards, de Frank Tashlin a Woody Allen, de Richard Curtis a Irmãos Farrely, e acho que nunca teria feito comédia na vida se os Zucker-Abrahams-Zucker também não tivessem feito. No Brasil, Mazzaropi ainda é exemplar como produtor e de como conduzir uma persona cômica nas telas.
Tenho uma queda também pelas comédias italianas dos anos 70, Mario Monicelli era o cara, e o meu próximo filme, “Os Farofeiros”, tem um pouco essa pegada. Enfim, curto um pouco de tudo. Mas de uns tempos para cá eu me localizei melhor, percebi melhor o que ando fazendo, e acho que a minha maior influência é, de fato, John Hughes, um cara que quase ninguém cita, você é um dos poucos. Eram as comédias dele que eu via quando adolescente no cinema e me marcaram de alguma forma. Assim como ele, eu tento correr atrás de bons high-concepts sempre. Está aí: Hughes é a minha maior influência.
O – Você considera que a sua experiência na comédia televisiva, uma linguagem totalmente diferente, ajudou na sua transição para a tela grande?
C – Ajudou até certo ponto. Foi uma boa escola, um bom beabá. Mas cinema é outra parada. A TV te educa a trabalhar rápido, te coloca em contato com muita gente boa, e te mantém quente e ligado com o público, o que é fundamental para quem quer fazer cinema popular. Ninguém passa incólume pela experiência de ter escrito um “Sai de Baixo”. Por outro lado, é preciso cuidado. A TV vicia a mão do autor, pois ainda depende mais da palavra do que da imagem, faz com que o roteirista foque mais na piada e na situação do que na trama, e a pressa te faz se apaixonar pela primeira ideia sempre, o que é mortal em cinema.
Ainda vejo muito isso com colegas da TV que chegam encantados com uma ideia que eles acham genial para um filme quando, na realidade, se analisar a fundo, mal renderia um bom episódio de um seriado qualquer. A cultura do high-concept, mais uma vez ele, se perde em uma programação diária, a TV não te prepara para isso. Costumo brincar comparando o ato de escrever para os dois meios com o boxe: na televisão você até pode ganhar por pontos, mas no cinema tem que ser sempre por nocaute.
O – Sou autodidata em tudo que faço, aprendi tudo com minha paixão por literatura e cinema desde a infância. As faculdades de cinema por aqui são boas para incutir preconceitos tolos e equivocados sobre cinema de gênero, tirar dinheiro de sonhadores, ou formar um bando de zumbis clones de Glauber Rocha. Como foi seu despertar criativo na área? E em qual momento você percebeu que estava apto para a responsabilidade de entregar um projeto de nível profissional?
C – Eu sempre li e escrevi muito desde garoto, mas cinema sempre foi paixão distante, sonho impossível mesmo. Sou do interior de São Paulo, de uma cidade metalúrgica, e nos anos 80 minha cidade tinha apenas um teatro e dois cinemas. Ir à uma sessão era luxo, ou seja, nada me estimulava. Com doze anos eu pedi uma câmera Super-8 para o meu pai e a reação dele para a minha mãe foi “por que esse moleque não pede uma bicicleta que nem os outros?”. Ficou por isso mesmo. Só fui me aproximar da área quando fui para São Paulo fazer propaganda na ESPM. Cheguei a fazer duas aulas de um curso de cinema na USP, o suficiente para nunca mais voltar.
O mercado era fechadíssimo e acabei desistindo. Concentrei-me na carreira de marketing. Tudo mudou por causa de uma namorada pretendente a atriz. Ela resolveu fazer a oficina de roteiro para programas infantis do Flavio de Souza na Casa da Palavra. Fui com ela fazer a inscrição e lá descobrimos que era preciso fazer um teste, escrever uma pequena cena à mão, na hora. Não me esqueço nunca do momento em que ela pegou uma folha para ela e puxou outra para mim. Eu disse que não queria fazer, estava só acompanhando. Ela disse “tenta, você escreve bem e vai ter que me esperar mesmo, quem sabe?”. Escrevi uma cena, ela também. Eu passei no teste, ela não. Gerou um mal-estar. Disse que faria a oficina apenas para repassar o material para ela, mas claro que não adiantou. Nosso namoro acabou pouco depois. Eu fiz a oficina e me amarrei.
Larguei emprego, chutei o marketing para o alto e investi tudo numa nova carreira. Entrei na Globo via outra oficina, uma das mais difíceis que já fiz, e em menos de dois anos de casa tornei-me chefe de equipe. A partir de então nunca mais tive dúvidas do que gostaria de fazer. Acho que minha maior qualidade sempre foi a de acreditar e enxergar qualidades em qualquer projeto que caísse na minha frente. Onde muitos paravam, eu não desistia. Hoje posso me dar ao luxo de selecionar o que faço, mas no começo eu escrevia o que me pedissem e esta foi a melhor escola que eu poderia ter.
Quando vejo roteiristas novatos fazendo cara de nojinho para alguns projetos percebo que não irão longe. Escrever apenas o que está na sua cabeça é fácil, difícil é solucionar encomendas dos outros. Quando os Gullanes me chamaram para escrever “Até que a Sorte nos Separe” o que eles tinham em mãos, como projeto, era apenas um livro de economia doméstica sem história nenhuma, o “Casais inteligentes enriquecem juntos”. Uma pedreira. Eu não fui o primeiro roteirista a ser escolhido, mas acho que fui o primeiro a olhar para aquilo e dizer “eu consigo adaptar”. Mais uma vez: não foi fácil, mas o bom roteirista faz tudo parecer fácil. Quando trouxe a ideia do ganhador de loteria que perde tudo, aproveitando a ideia do livro às avessas, o projeto deu um salto. Acho que foi neste filme que eu percebi que poderia realmente fazer qualquer coisa.
O – A trilogia “Até Que a Sorte Nos Separe” tem muitos detratores. Eu não gostei do primeiro (o problema estava na execução, não no roteiro), mas percebi no segundo e no terceiro um maior refinamento, um ajuste certeiro na sintonia fina, encontrando equilíbrio no histrionismo cômico do Leandro Hassum. “O Candidato Honesto” é, a meu ver, o melhor filme do Hassum até o momento, graças à qualidade do texto. Você costuma fazer vários tratamentos do roteiro? É preciosista, ou desapegado com o material?
C – Eu gosto bastante dos três “Sorte” e tenho um carinho especial pelo primeiro. Mas é notório que aprendemos muito no decorrer dos três filmes, a gente melhora com o tempo. Também é mais fácil começar uma história com os personagens já estabelecidos, isto dá mais agilidade às tramas. Franquias não fazem sucesso à toa. Tirando o primeiro, os outros dois tiveram pouquíssimos tratamentos, no máximo três ou quatro.
Quando chegamos no “O Candidato Honesto” estávamos muito mais azeitados, o filme foi pensado, escrito, produzido, em tempo recorde para não perdermos a data. Ali valeu a regra do cinema comercial onde é preferível errar rápido do que acertar devagar. E não dá para fazer isso sem desapego. Não gosto de rebuscar e não sou preciosista. O Santucci às vezes fica chocado com a minha capacidade de cortar cenas e jogar piadas fora na edição. Não admito que ninguém seja mais cruel do que eu com o meu material. Também não gosto de perder tempo. O meu último roteiro teve nove tratamentos, mas foi uma exceção, questões de produção determinaram as modificações.
Número de tratamentos em excesso nem sempre resulta em um roteiro melhor. Na minha opinião o que determina o número de tratamentos é qualidade da proposta. Se uma história precisa ser reescrita dez vezes é porque talvez não seja uma boa história. Por isso eu prefiro investir minha atenção e meu tempo ao máximo no momento de criação, na ideia. Se eu não tiver uma boa ideia, não escrevo. Com uma boa ideia e uma boa história em mãos, você resolve mais da metade do trabalho logo de partida. Claro que se tivermos tempo para abrir o roteiro, tudo ficará melhor. Mas tempo às vezes tempo é tudo o que não se tem nesse mercado. Por isso prefiro investi-lo na criação. Não acredito na tese do 1% de inspiração e 99% de transpiração no cinema brasileiro.
O cinema brasileiro precisa, principalmente, de 50% de inspiração. Nós erramos mais nas escolhas dos projetos do que propriamente na execução. Estou cansado de ver filme bem dirigido, com roteiro bem escrito, de história meia-bomba. Podem falar o que for do meu trabalho, cometo erros aos montes, mas uma coisa é certa: todas as minhas histórias têm pegada.
O – Você tem interesse em dirigir o próprio roteiro? É um desafio que considera válido em um futuro próximo?
C – Tenho interesse sim e acho muito válido. Já fui convidado várias vezes. Provavelmente, se minha agenda deixar, dirigirei meu primeiro filme em 2018. O problema é realmente limpar a mesa para poder partir tranquilo para o set. Minha experiência como produtor está sendo trabalhosa, mas me ensinou muito. Há anos não consigo fazer um curso, o tempo anda escasso, mas tomo lição de cinema todos os dias fazendo cinema. Acho que a prática continua a melhor escola.
O – Eu creio que é possível ousar mais nas comédias nacionais, isso foi um dos pontos que me chamou a atenção no trailer de “Divórcio”. Claro que o público alvo é pensado para ser o mais amplo possível, nenhuma indústria de cinema se forma apenas com obras umbilicais, mas não são todos os roteiristas no mercado que buscam esse “algo mais”, como percebo em seus trabalhos. Há uma maioria que prima pelo entretenimento rasteiro, imediatista, estão mais para “Loucademia de Polícia”, que para Billy Wilder, Blake Edwards, ou John Hughes. Como você, que está dentro do olho do furacão, enxerga essa questão? O que impede esse aprimoramento? O sistema atual permite esse tipo de voo mais intelectualmente ambicioso?
C – Sim, permite. Mas este salto realmente é complicado de dar. A gente até gostaria de ousar mais, mas estamos limitados. Filmes são muito caros, é preciso coragem para ousar. Eu e Santucci sempre lembramos nas entrevistas que nós ousamos e arriscamos o tempo todo, desde o início. Nós não seguimos tendências, nós geramos tendências. Quando a moda era fazer comédia de casal, nós viemos com filme de protagonista feminina, a primeira de Ingrid Guimarães, uma aposta.
Quando virou modinha fazer filme de protagonista feminina, investimos no protagonismo masculino, o primeiro de Leandro Hassum, outra aposta na época também. Quando todo mundo resolveu fazer comédia familiar, viemos com um blockbuster político. E assim vamos. Temos a consciência clara de que o aprimoramento do cinema passa pela diversificação temática, algo que grande parte do mercado ainda não percebeu e por isso ainda erram muito. Acho que o cinema brasileiro marca muita touca. Por que até hoje não fizemos uma comédia sci-fi? Por que desde Carlota Joaquina tivemos pouquíssimas comédias históricas?
Veja, mais de dez milhões de pessoas foram ver “Os Dez Mandamentos”, por que ninguém se arriscou a fazer uma sátira? Pecamos mais pela falta de ousadia do que pelo aprimoramento técnico. Uma coisa não avança sem a outra. Só evoluiremos tecnicamente, desde a criação até a execução, se investirmos no novo. Sempre digo que não adianta muito correr atrás do que a gente já está fazendo, o cinema precisa de frescor mais do que qualquer outra coisa.
Este ano já rodamos e lançaremos uma comédia sobre farofeiros, que se passa numa casa de praia lotada, algo comum pelo qual todo brasileiro já passou, e uma pergunta que parte do elenco sempre fez foi: “mas isso nunca foi feito antes?”. Não, não foi. Assim como não havia nenhuma comédia de ganhador da Mega-Sena até fazermos o primeiro “Até que a Sorte nos Separe”. Note bem: a Mega-Sena era a maior loteria do país há mais de quinze anos e ninguém a usou em um filme. O mercado precisa ser mais esperto.
O – Paulo, grato pela gentil atenção. Peço que deixe uma mensagem para meus leitores, cinéfilos apaixonados que valorizam a comédia nacional.
C – Uma mensagem que deixo sempre, em quase todo final de palestra que dou em faculdades e festivais é uma só, que parece simples, mas não é: seja fiel a você mesmo, sempre. Nunca se esqueça do momento que você começou a pensar em fazer cinema. Nunca perca o seu encantamento. Lembre-se de quando você era garoto ou garota, dos filmes que seus pais te levaram para assistir, e como você ficou encantado com aquilo, e que foi o que realmente te motivou a querer fazer aquilo. Esqueça as toneladas de teoria da crítica e todo lixo ideológico que seu professor de faculdade lhe ensinou. O que você sente pelo cinema é mais importante.
Se você quiser fazer um musical, faça. Se quiser fazer uma ficção científica, também. Se quiser fazer uma comédia estúpida, idem. Não se deixe levar pelo discurso do cinema engajado, social, artístico, tudo isso é muito sedutor, mas também falso. No final, o que fica é aquilo que você amou fazer. Foi-se o tempo em que o cinema poderia mudar o mundo. O cinema vai, no máximo, mudar a sua vida. E acredite: já é mudança mais do que suficiente.
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O Paulo é de Taubaté, terra de Mazzaropi o Woodi Allen brasileiro, rei do non sense. Cômico , roteirista , produtor autodidata que mostrou a todos que fazer comedia era serio .