A Verdade (La Vérité – 1960)
Quando o produtor Raoul Lévy sugeriu ao diretor que trabalhasse com a maior estrela francesa da época, Brigitte Bardot, ele sabia que apenas um profissional competente e sério como Clouzot seria capaz de subverter a imagem da jovem, com coragem para contrariar as expectativas do público, acostumado a enxergar ela apenas como um símbolo de beleza.
“A Verdade” até entrega boas doses de provocação nos flashbacks, mas, em essência, é um impecável e sóbrio drama de tribunal. Vale ressaltar no elenco a presença do grande Jacques Perrin.
Bardot teve nas mãos, pela primeira vez, um material que verdadeiramente a desafiava. Ela vive a esfuziante Dominique, acusada pela eliminação de seu amante, vivido por Sami Frey, que era noivo de sua tímida irmã. Enquanto acompanhamos o seu julgamento e os depoimentos das testemunhas, somos apresentados à jornada que a conduziu àquele terrível destino.
O roteiro foi escrito por Clouzot e sua esposa, a brasileira Vera Gibson-Amado, que faleceria pouco tempo depois. O toque de gênio é fazer com que a opinião do espectador sobre a jovem mude a cada situação nova revelada, o texto nos incita a julgar cada ação na tela de forma intempestiva, exatamente como a sociedade faz no macrocosmo, tentando reduzir a complexidade de sentimentos humanos a um padrão facilmente identificável, a garota é boa ou má, sem tons de cinza.
A trama envolve esta simplificação com o manto da crueldade, a tendência natural ao apedrejamento, a negação da empatia, o distanciamento arrogante das vaidosas figuras de autoridade, advogados, juiz e júri, que enxergam a garota como estatística, como mais um caso dentre tantos.
O que importa, ao final do dia, é se mostrar superior, os advogados de defesa e de acusação buscam respeitabilidade, o embate dura até a martelada final, os dois defendem apenas o dinheiro na conta. Se a jovem será condenada, ou não, tanto faz, outros clientes virão. Em uma brilhante cena, os dois profissionais, no calor da silenciosa arena de batalha, conscientemente omitem por conveniência trechos de uma carta que está sendo lida, moldando os fatos sem qualquer remorso. Faz parte do trabalho. Qual verdade importa para eles?
Dominique roubou o noivo da irmã com a intenção clara de agredir ela, sempre tão ajuizada e meiga, mas o rapaz também agiu errado, ele não se preocupou com os sentimentos da noiva. Após conseguir seu objetivo, ela se desinteressou por ele, voltou para a sua rotina de festas e muita paquera, o rapaz se revoltou, ficou enciumado. É quando o filme entrega uma de suas cenas mais bonitas, de forte simbologia.
Ele é maestro, vive da música, da arte, gosta de controlar tudo. Ela, uma força da natureza, desapegada das normas sociais, livre. Abandonada, aquela que acreditava ser tão autossuficiente, entra escondida em seu local de trabalho e chora estupefata ao ver ele regendo.
A grandeza daquele som, tão diferente de tudo o que ela costumava escutar, ativa algo em seu íntimo que nunca havia sido estimulado, ela passa a entender o valor do conservadorismo. O amor genuíno, sem se importar com competição infantil por atenção, sentimento que não se esvai ao não ser correspondido, já que não depende de aceitação, ele simplesmente existe.
Este momento engrandece ainda mais o desfecho brutal da obra, adicionando camadas preciosas, evidenciando o quão frágil é o conceito do julgamento.
Os jornalistas que cobriam o caso, antes mesmo das últimas palavras serem ditas, já abandonaram o local, o que importa é a manchete, o que importa é ser o mais rápido a entregar a matéria. O material humano nesta equação é lixo.
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