Coração Satânico (Angel Heart – 1987)
O diretor Alan Parker abraçou o estilo neo-noir com segurança invejável, creio que apenas Ridley Scott conseguiu feito similar, com “Blade Runner”, este perfeito equilíbrio entre estética, conteúdo e execução.
A mistura de aventura detetivesca, com forte inspiração nos trabalhos de Raymond Chandler, com o horror fincado no ocultismo, garante uma aura diferente de tudo o que o gênero apresentava na época, raras exceções como “Hellraiser” e, com menos intensidade, “Os Olhos da Cidade são Meus”, lançados no mesmo ano, contrastavam bastante com o auge da onda “terrir”.
Apostar em algo tão sombrio, tão adulto, não parecia comercialmente inteligente, a garotada queria rir depois de cada susto. E não há alívio cômico algum em “Coração Satânico”, apenas o devastador relato da jornada de um homem às profundezas do inferno.
Mickey Rourke vive Harry Angel, um detetive que aceita um serviço aparentemente simples, após uma enigmática conversa com um homem de poucas palavras e unhas enormes e pontudas, grande momento de Robert De Niro, mas que rapidamente se percebe envolvido até o pescoço em uma série de crimes envolvendo uma seita do Harlem, em plena década de 50, período dominado pelo racismo declarado.
Sem revelar muito, para não estragar a experiência de quem verá pela primeira vez, afirmo que o conceito por trás do desfecho é dos mais corajosos que o gênero já entregou, especialmente considerando que atualmente vivemos um tempo culturalmente marcado por histórias psicologicamente infantilizadas.
Auxiliado muito pela trilha sonora jazzística de Trevor Jones, cujos temas evocam a essência primitiva do ser humano na busca pela natureza do mal, comandados pelo saxofone de Courtney Pine, dos Jazz Warriors, o resultado potencializa a atmosfera suja, proibida, o romance como elemento de ritual, o corpo se debatendo ao tomar consciência da violação da alma, a música rimando com os símbolos frequentes, galinhas sacrificadas, o pastor evangélico que desavergonhadamente vende a palavra divina (“se você acredita em Deus, abra sua carteira”), as pás do ventilador que lentamente mudam de direção indicando que algo antinatural ocorre, o pentagrama invertido, sinais que ganham pontos em revisão.
Alan Parker, de “O Expresso da Meia-Noite”, mestre em construir climas absurdamente opressivos sem firulas técnicas, estabelece um tom perturbador que gradativamente ganha contornos de pesadelo, com sua lógica impenetrável e seu senso de perdição constante. Revisto hoje, trinta anos depois de sua estreia, não envelheceu sequer um dia.
Obra-prima do terror que segue desafiando seu público.
* A editora “Darkside” está lançando o livro “Coração Satânico”, de William Hjortsberg, com a qualidade extrema que a consolidou no mercado nacional.
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Certa vez li uma crítica sobre o filme “Entrevista com o Vampiro”: “não é um filme de terror, não é um drama... é um filme angustiante”. Imediatamente minhas lembranças remeteram-me ao “Coração Satânico”. O livro, ainda mais após sua crítica positiva, preciso conferir, devorando-o; sempre à noite, sob um fraco fio de luz, no silêncio que a mata vizinha me proporciona. Não vejo a hora! O filme? Tenho que rever.