Silvio Santos foi um generoso pai para toda uma geração de garotos, a programação do SBT apimentava as tardes com comédias adolescentes eróticas e presenteava as nossas noites de domingo com clássicas pornochanchadas.
“Histórias Que Nossas Babás Não Contavam”, de 1979, costumava ser transmitida com frequência na “Sessão das Dez”, as chamadas nos intervalos do “Topa Tudo Por Dinheiro” já bastavam para que eu, na época, um pré-adolescente excessivamente introvertido, sentisse aquele maravilhoso frio na espinha, antecipando uma noite mágica na frente da televisão e o atraso considerável na escola na manhã seguinte.
“Se você já desconfiava das histórias que a babá contava, tinha toda razão! Ela lhe contou uma outra versão. O lado que você conhecia era só fantasia, história de príncipe e princesa sempre acaba em safadeza.” (Tema musical de abertura)
Hoje em dia a moda é discutir a agitada vida romântica dos reis, rainhas e príncipes de “Game of Thrones”, mas nada surpreende aquele que cresceu vendo a princesa Clara das Neves sendo disputada em sorteio por seis anões espevitados, já que o sétimo, Zangado, amargava o orgulho ferido após perder o monopólio da turma de “filhinhos da… floresta”, como o roteiro espirituosamente define o grupo.
A maravilhosa Adele Fátima, dublada com a voz sensual de Marly Marcel, ficou marcada para sempre no imaginário coletivo da garotada. Meiry Vieira, outra beldade, vivia a maldosa rainha que era aconselhada pelo espelho mágico afetado, vivido por Renato Pedrosa.
O príncipe, vivido por Dênis Derkian, dublado por Marcelo Gastaldi, teve a sorte de atravessar horizontalmente neste filme o caminho de duas das mulheres mais lindas do cinema brasileiro, mas, em uma reviravolta que nem M. Night Shyamalan cogitaria, acaba sorridente nos braços do anão rejeitado. E pensar que o cinema engajado atual acredita estar sendo revolucionário.
“A história da maçã é fantasia, maçã igual àquela o papai também comia.” (Marchinha de Carnaval entoada pelos anões)
Conversei com o Dênis sobre as lembranças das filmagens e de como ele foi escalado para o projeto, depoimento exclusivo para o “Devo Tudo ao Cinema”.
D – Caro Octavio, vai aí um resumo do que lembro quanto ao projeto, já não me recordo com precisão de nomes e lugares, mas descrevo a situação. Eu lembro que estava numa roda de pessoas ligadas ao cinema da boca, rua do Triunfo, e discutia-se os rumos do cinema, como sempre difíceis.
A conversa começou séria, depois de algum tempo, como sempre entre um copo e outro, alguém disse: já que está tudo uma m* mesmo, podíamos fazer um filme satirizando os contos de fadas, mas tudo na sacanagem, aí saiu um: “pqp”! Alguém criticou, disse que isso ia dar m*, que a crítica ia cair de pau; outro disse: que se dane a crítica.
E começou a viagem: que tal chapeuzinho vermelho e o lobo mau? A coitada da chapeuzinho, o lobo mau e vovozinha foram sacaneados por algum tempo pela turma, até que alguém deu a ideia da Branca de Neve, começou outra sessão de sacanagem, até que alguém disse que isso daria um filme.
Quem fará a Branca Neve? Daí começou a esculhambação, até que alguém disse que precisava ser uma mulata gostosa, tipo aquelas do Sargentelli. Daí saiu outro “pqp”. E a Rainha? Vários nomes sugeridos. E o caçador? Alguém disse: Costinha, daí veio outro “pqp”. E o Príncipe? Saiu o terceiro palavrão, seguido de “você, bonitão!” Aquilo só podia ser brincadeira! Só que não foi, aconteceu!
O – Osvaldo de Oliveira foi um grande diretor de fotografia, trabalhou na série “Vigilante Rodoviário” e em “O Caso do Irmãos Naves”, e, como diretor, ele tinha feito alguns filmes voltados para a música sertaneja (como “No Rancho Fundo”, de 1971), antes de entrar no filão da pornochanchada. Como ele lidou com o material do filme? Vocês tinham boa relação? E seu relacionamento com o elenco?
D – Sobre a minha relação com o diretor, na verdade não tínhamos proximidade, nos víamos às vezes, mas não existia nenhum vínculo de amizade até a filmagem propriamente dita, eu conhecia o profissional, os filmes e histórias engraçadas.
Ele era uma figuraça, no set só confirmou o profissional conhecedor de seu ofício e sua intimidade com as lentes e enquadramentos, muito técnico, deixou seu legado, um diretor do cinema feito na raça, em um tempo de titãs. Saudades do velho Carcaça!
Quanto a relação com o elenco, conhecia Felipe Levy, os demais fui conhecer no dia das filmagens, não existia essa prévia, tipo leitura de texto, apresentação do elenco, discutir personagem etc… Era no grito, se vira nos trinta.
Logicamente que coisas inéditas aconteciam no set, o Príncipe montava um belo garanhão branco, cheguei mais cedo no set de filmagem para poder criar um vínculo de confiança com o animal, já que tratava-se de um puro sangue, logo obtive domínio do animal, fiz com ele várias vezes o percurso da estreita picada pela qual deveria passar montado, estava tudo bem, posicionaram a câmera na lateral da picada, na cena eu teria que passar por ela montado no belo animal, fizemos alguns ensaios de passagem pela câmera, mas na hora do valendo, o bicho pegou, pois a câmera produzia um som que lembrava o guizo de cobra cascavel.
Quem disse que esse cavalo passava pela câmera? O belo puro sangue foi substituído por um pangaré, no filme ninguém percebeu a troca (risos).
Tem uma falha curiosa na película, eu fumava na época, numa das cenas em que estou montado no cavalo, entre os ensaios da cena que se repetiu várias vezes, o diretor filmou o ensaio, e nesse momento acendi um cigarro, pois era ensaio, não estava valendo. Eu penso que na montagem prevaleceu o take em que estou com o cigarro entre as rédeas (risos).
E guardo uma lembrança hilária do Costinha. Ele não voa, tinha medo de avião. Eu perguntei a ele a razão, ele respondeu: já pensou se é o dia do piloto morrer e eu estou junto? (risos)
O – Como é que você enxerga, em retrospecto, este trabalho?
D – Sinceramente, penso que não existiu intenção de fazer crítica, ninguém estava levantando qualquer bandeira social, muito menos intelectual, nem mesmo indicando uma nova tendência, acho que a intenção era que a ideia fosse reverter em bilheteria, talvez o produtor tenha imaginado um fenômeno de bilheteria.
O filme, pelo que acompanhei e soube, teve carreira normal. O curioso é que depois, no decurso dos anos, ele foi despertando curiosidade de diferentes públicos, e é assunto de jovens cineastas, continua gerando riqueza para seu produtor. Hoje é Cult. No âmbito do reconhecimento, nada mudou. Eu nunca recebi um só centavo de direitos autorais.
Na esperança que o produtor algum dia disponibilize em algum banco os valores correspondentes que nós atores temos direito, contudo sigo “cinemando”, tomando cuidado redobrado para não mais trabalhar com picaretas, prometo oferecer ao público mais alguns bons filmes.
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