Os Guarda-Chuvas do Amor (Les Parapluies de Cherbourg – 1964)
“Eu nunca serei capaz de viver sem você…”
Cada linha de diálogo neste maravilhoso filme de Jacques Demy é cantada, o que pode afastar aqueles que não conseguem apreciar as potencialidades inerentes ao gênero musical.
Eu sou completamente apaixonado pela obra, sentimento que apenas se fortaleceu ao vê-la recentemente, pela primeira vez, na tela grande, exibida na mostra “Jacques Demy – Entre o Realismo e a Fantasia”, em que tive a honra de escrever um texto para o catálogo, abordando a história de amor entre Demy e Agnès Varda.
O inesquecível desfecho é percebido por muitos como algo intensamente triste, até depressivo, mas eu enxergo nele a beleza da maturidade do rapaz (Nino Castelnuovo), a segurança com que ele se despede daquela que o trocou outrora por uma ilusão de estabilidade financeira e, emoldurada pela linda trilha sonora de Michel Legrand que ganha contornos apoteóticos no momento, a pura felicidade com que ele se volta para beijar a doce Madeleine (Ellen Farner) e brincar com seu filho.
Geneviève (Catherine Deneuve), adolescente mimada, sem resistir aos impulsos gananciosos da mãe (Anne Vernon), aceitou entrar de cabeça em uma relação com alguém que sequer conhecia direito, Roland (Marc Michel), um elegante endinheirado, ao invés de aguardar o retorno de seu namorado pobretão que trabalhava em uma oficina mecânica, vale ressaltar, mesmo ofício do pai do diretor, e que havia sido enviado para a guerra.
Ela, sim, como enfatiza o refrão da música, nunca será capaz de viver sem ele, o seu rosto, apesar de ricamente adornado, mesmo antes de reconhecer o rapaz pela janela do carro na noite nevada, ostenta uma miserável tristeza, ela ajeita o penteado no espelho como quem se agarra àquilo que restou de sua personalidade. Já Guy, esbanjando no início do filme leveza e ingenuidade, forjou seu caráter com a dor, agora a encara sem medo, enquanto ela frequentemente desvia o olhar, consciente do equívoco cometido.
Ao questionar se ele gostaria de conhecer a própria filha, o rapaz não pensa duas vezes, por respeito à criança que não teve culpa, ele nega a oferta e indica que já está na hora dela partir. Aquela é a realidade que Geneviève buscou, que ela durma na cama que armou. “Só se morre de amor no cinema”. Na vida real, quando o indivíduo é emocionalmente maduro, ele se encarrega de redirecionar a rota, a adaptação faz parte do processo natural de autoconhecimento.
A separação é um final feliz, porque Guy silenciosamente confirma que fez a escolha certa ao prestar atenção na tímida e generosa Madeleine, que abdicou de boa parte de sua juventude para cuidar de sua tia adoentada, enquanto o admirava nas sombras. Ele merecia ser amado por ela, que merecia ser amada por ele. O trabalho dos dois irá garantir a justa estabilidade financeira que a mãe da outra tanto desejava. Já a sonhada riqueza material que Geneviève conquistou jamais trará paz à sua alma.
A oportunista que seguiu viagem imersa em culpa merece continuar em seu casamento frágil alicerçado na mentira, elemento evidenciado na opção da melodia fúnebre como marcha nupcial. Eternamente frustrada, vazia, sem rumo.
O afeto sem interesse, o amor genuíno venceu.
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Linda crônica, lindo filme, música excepcional de Legrand.