Críticas

“A Menina do Lado”, de Alberto Salvá (+ Entrevista com Olga P. Costa)

A Menina do Lado (1987)

Mauro (Reginaldo Faria) é um jornalista de 45 anos que aluga uma casa em Búzios com o objetivo de terminar o livro que está escrevendo. Na casa ao lado da sua está Alice (Flávia Monteiro), jovem de apenas 14 anos que está em férias. Solitária e afável, aos poucos ela vai conquistando o homem que, contrariando todas as expectativas, percebe que está apaixonado por ela.

Este foi meu primeiro contato com a filmografia de Alberto Salvá, ainda na pré-adolescência, através de uma exibição noturna na TV Bandeirantes.

Eu esperava ansiosamente por algo apimentado no nível do que a emissora passava na “Sexta Sexy”, programa que era tido como sagrado por todos os rapazes nerds e introvertidos, mas fiquei positivamente impressionado ao final, a carga de melancolia e as emoções genuínas comprovavam que aquele não era um material descartável. Havia sensualidade em doses generosas, mas, também, delicadeza e, principalmente, carinho no tratamento dos personagens.

Especialmente nestes tempos dominados pelo terrível “politicamente correto”, eu considero fundamental salientar que é errado comparar a obra com “Lolita”, o livro de Vladimir Nabokov que foi transportado para o cinema por Stanley Kubrick, já que o segundo aborda o fetichismo obsessivo e doentio de um homem de meia-idade por uma adolescente, enquanto o roteiro de “A Menina do Lado” explora uma verdadeira relação de amor intensamente mútuo entre os protagonistas, emoldurada pela bela trilha-sonora composta por Tom Jobim, algo conceitualmente mais próximo de “O Amante”, de Marguerite Duras, que também recebeu uma sensível adaptação cinematográfica, dirigida por Jean-Jacques Annaud.

Se você vê no trabalho qualquer traço de desvio criminoso, faça uma autoanálise, talvez esteja inconscientemente apenas projetando hipocritamente suas taras reprimidas na arte. Alice não é uma caricatura provocadora, ela é psicologicamente frágil, carece de uma figura materna equilibrada e acaba encontrando no vizinho segurança emocional. E Mauro, por outro lado, descobre no reflexo dos olhos da menina uma versão sua plenamente vulnerável, antítese da imagem autoimposta do jornalista desbravador que defende na sociedade, alguém que chora a ausência dela ao fazer amor com a esposa. Os dois se completam. Ele se encanta ao constatar que ainda é capaz de se apaixonar, a diferença de idade é um obstáculo considerável, mas ele decide reagir com naturalidade aos impulsos.

No Festival de Gramado, “A Menina do Lado” recebeu dois Kikitos nas categorias Melhor Ator (Reginaldo Faria) e Melhor Atriz Coadjuvante (Flávia Monteiro), além de ter sido indicado a Melhor Filme.

***

Na tentativa de compreender melhor a visão de cinema do saudoso diretor Alberto Salvá, conversei com uma querida e talentosa amiga, Olga Pereira Costa, que foi parceira dele na arte e na vida.

C – Olga, como nasceu a paixão dele pelo cinema? Quais eram os seus filmes favoritos?

O – A paixão de Salvá pelo cinema nasceu do berço, uma vez que, na época de seu nascimento, há 80 anos completados no último dia 13 de abril, a Espanha estava mergulhada na Guerra Civil Espanhola, sob o regime ditatorial de Franco, e o único lugar mais aquecido, à noite, era a sala de cinema, grande, de Barcelona. Não havia calefação nas casas; então, quem não estava na guerra (os homens, como seu pai: foram combater por Franco à força, ou eram mortos fuzilados em praça pública) – basicamente mulheres e crianças, iam para o cinema à noitinha e lá ficavam até o amanhecer. O calor humano é que mantinha estas pessoas vivas e distraídas com filmes hollywoodianos que passavam sem parar, um após outro. Mas até então não era bem paixão, era exposição aos filmes por necessidade de abrigo e calor durante as longas noites, muitas delas com Barcelona sob bombardeio.

No colo da mãe, Pepa (Josefa Contel, de solteira), o pequeno Alberto assistia, sem entender muito bem, a desenhos animados, musicais, dramas, comédias, tudo. Paixão mesmo surgiu quando, passada a guerra e as idas ao cinema já feitas em condições normais, com os pais (o pai, Mathias, que desertou quando soube por carta que Pepa estava grávida, passou um ano escondido dentro de casa, até a guerra acabar), assistiu  a um filme de Fellini e virou a noite em estado febril, debatendo com os pais – ele já era adolescente nessa época – de maneira muito alterada e comovida sobre o filme. Então, pode-se considerar que o Fellini neo-realista, em P&B, foi o detonador da paixão de Salvá pelo cinema. Nesta bendita noite, ninguém dormiu na casa. Acho que isto já aconteceu no Brasil, para onde ele veio com 14 anos de idade. O hábito/vício do cinema continuava no Brasil. Sua mãe, uma costureira, adorava ver filmes, e os dois, mãe e filho, suburbanos de Higienópolis, iam muito ao cinema juntos. O pai trabalhava como vitrinista da Lojas Marisa, no Centro.

A paixão foi se sofisticando, e a memória das noites de cinema durante a guerra deixou uma marca: a preferência dos musicais aos desenhos animados. Ele adorava, até sua morte, musicais em geral. Detestava os filmes Disney antigos, como Branca de Neve, por exemplo. Drama, romance, sempre. Salvá ficou fã de Fellini justamente pela abordagem humana de personagens tão sofridos e marginalizados. Ele tinha paixão especial, e admiração, pelos dramas neo-realistas. Mais à frente, descobrindo Bergman e Cassavetes, passou a idolatrar o primeiro e admirar profundamente a obra do segundo. Sobre filmes favoritos, ele era bem assertivo: Brief Encounters (Desencanto, de David Lean) corria por fora, parava acima. Seu interesse sobre as relações homem/mulher veio deste filme, que ele considerava “sua” obra-prima favorita. De Cassavetes, “A Woman under the Influence” (Uma Mulher Sob Influência) o levava às lágrimas sempre. Ele babava com Cassavetes como diretor e com a performance de Gena Rowlands num papel tão difícil.

Resumidamente, pode-se dizer que seus filmes favoritos eram estes dois, além de “Gritos e Sussurros”, de Bergman. Diretores, ele admirava os grandes, como Bergman, Fellini, Kurosawa, Kubrick (ele adorou o último, “De Olhos Bem Fechados”, um filme sobre relacionamento de casal). Salvá era também muito bom em apostar, mesmo à distância, em novos e promissores diretores, como Paul Thomas Anderson, de quem ficou fã. Sua paixonite crônica pela Julia Roberts já tinha virado piada, mas era sincera e embasada; o sorriso mágico de uma mulher longe da perfeição de um padrão estético; uma atriz competente e empática, segundo ele, que considerava “Uma Linda Mulher” um excelente filme – bem mais do que apenas uma comédia romântica. Era “filme de aula”, inclusive, para explicar a relação Herói/Mentor.

C – Como era o processo de criação dele?

O – O processo de criação do Salvá era muito baseado na observação da realidade. Ele, que se considerava “um gringo de Copacabana”, adorava almoçar quando possível numa churrascaria e observar o relacionamento dos gringos alemães com mulheres da vida mulatas, bonitas, que levavam a tiracolo uma amiga, também da vida, meio feiosa e morta de fome – o gringo, por caridade e para agradar à bonitona, pagava para ambas. Isto até gerou seu penúltimo filme, o média “Amigas”. O gringo era o Dussek, e a mulata bonita, Mariana Sacramento, que não é mais atriz. Tem um making of bonzinho deste filme, que dei para Mariana, que é muito minha amiga.

Além da observação, o processo envolvia um certo “corta & cola” de experiências de vida dele e de seus amigos e/ou parentes. Nos anos 70, o que não faltava era história. Casamentos, descasamentos, vida hippie, drogas e muita “porralokice”. Mas pode-se considerar que seu processo de criação começava da observação do comportamento de pessoas e situações. Em seguida, o desenvolvimento, com pesquisas e entrevistas, dependendo da evolução do roteiro. Com o tempo, Alberto passou a usar uma script doctor para todos os seus roteiros, de meados de 2001 até sua morte, em 13 de outubro de 2011. Como companheira e ex-aluna, esta script doctor mandava muito bem. O nome dela é Olga Pereira Costa (risos).

C – Ele teve muita sorte em contar contigo, Olga. Aprofundando a questão anterior, como ele enxergava o cinema nacional? Ele tinha uma visão crítica/distanciada?

O – Salvá enxergava o cinema nacional como “cinema”. Talvez pelo fato de ter vindo do exterior, não ser brasileiro nato, e ter tido experiências sensoriais com o cinema desde muito criança, ele não fazia diferença entre nacionalidades de filmes. Naturalmente, ele tinha preferências por certos diretores e filmes nacionais (Roberto Farias e seu antológico “Assalto ao Trem Pagador”, por exemplo), mas isto pouco importava. Filme era filme, cinema era cinema, e, com a idade, passou a dizer que um filme podia ser qualquer coisa, menos chato.

C – Concordo plenamente com ele, defendo isto desde os meus primeiros textos profissionais.

O – A visão mais crítica que ele tinha era sobre as confusões e dificuldades do mercado brasileiro de cinema em si: editais, leis, burocracia; isto ele detestava e criticava o tempo todo, desde bem cedo, até morrer.

Outra crítica, mesmo que mais sutil e indireta, era aos colegas que (achavam que) pertenciam à “escolas”. O Cinema Novo foi cruel com ele, que tinha uma mente e um espírito muito livres para criar e retratar realidades. Ele até admirava Glauber, mas achava ridículo aquilo tudo de retratar os ricos como maus e os pobres como bons. Foi desta camisa de força da época, que ele não suportava, que surgiu o “Grupo Câmara” (sim, CâmAra”, nem ele sabia a razão; o normal seria ser “CâmEra”, mas nada era muito “normal” nos anos 70). Os filmes produzidos por esta cooperativa, que englobava amigos e sua primeira esposa, Walquiria da Paz, retratavam em suas histórias a vida cotidiana, cômica ou dramática, de personagens cariocas. Desta safra, vale destacar “Como vai, vai bem?” e “Um Homem sem importância”.

A tribo do Cinema Novo crucificou o Salvá por sua falta de “engajamento” e, mais tarde, reconheceu seus erros e desculpou-se formalmente com ele. Afinal, quem era premiado sem trégua ao longo dos anos 70 e 80 era o Salvá. O Cinema Novo aqui tinha nada a ver com o movimento, na França, da Nouvelle Vague. Ele ficava muito de saco cheio, nos anos 70, quando chegava na praia e os amigos/colegas só falavam sobre leis, portarias e editais, e não sobre filmes, diretores, atores, atrizes, etc. Estas eram suas críticas: o “sistemão” que emperrava a produção e a distribuição e a abordagem parcial de muitos de sua época sobre temas e personagens muito sem nuances; as nuances para ele eram importantes, e este espírito de carneirada o irritava profundamente.

C – Posso dizer que, conhecendo agora melhor este lado crítico do Salvá, sabendo que ele sofreu na pele como Anselmo Duarte, outra vítima da inveja dos colegas de Cinema Novo, respeito ainda mais seu trabalho. E considero de extrema importância que seu legado seja sempre celebrado. Para finalizar, especificamente sobre “A Menina do Lado”, como nasceu o projeto? E qual sentimento ele nutria pela obra em retrospectiva?

O – Na verdade, o filme é a adaptação para o cinema de um conto da própria autoria de Salvá, que foi publicado na antiga Revista Status, na seção de contos apimentados, concorrendo a um prêmio em dinheiro, e ele ganhou com seu “Alice”. Foi um momento de felicidade para ele, este prêmio, e permitiu que ele se separasse da segunda mulher e engatasse o namoro com a publicitária/produtora Elisa Tolomelli. Ele adaptou o conto para roteiro, submeteu o projeto de longa-metragem à Embrafilme, que vivia seu auge como co-produtora e distribuidora, e ficou torcendo para ser aprovado.

Como a Embrafilme tinha que analisar muitos projetos, ele, Salvá, foi tocando a vida e a sua produtora, já em sociedade com Elisa – o “dedo verde” do Salvá, por uns 10 anos. Gozando do prestígio e dos prêmios angariados com “Um Homem Sem Importância”, que foram muitos e importantes, ele conseguiu entrar para uma espécie de oficina de roteiro de novelas na Globo. Acho que isso foi nos anos 80, ou seja, antes do Collor, que ferrou com tudo e todos. Justamente quando ele estava para ser escalado para escrever uma novela (ele já escrevia e dirigia “Carga Pesada”), a Embrafilme o chamou lá para acertar os detalhes do financiamento, que havia sio concedido para “A Menina do Lado”. Como ele nutria um carinho enorme pela obra, desde sua origem como conto premiado pela Status, ele deixou a Globo e partiu para fazer o filme. Daniel Filho, ao despedir-se dele na Globo, disse que quando ele acabasse o filme, seu lugar estaria lá guardado. Ele acreditou. Mas acho que ele teria trocado o cinema pela TV de qualquer forma.

Ele sempre se referia ao filme como uma das coisas mais prazerosas que havia feito na vida: sua relação com Elisa estava ótima, sua equipe para o filme era de primeira linha, e o galã Reginaldo Farias, seu amigo, estava no auge recém-saído de “Dancin’ Days”, a novela. A seleção da menina, que ele queria que fosse uma pessoa nova, desconhecida, foi a parte mais delicada, e ele ficou um pouco ansioso, até que surgiu a Flávia Monteiro. Ele contava que, quando ela fez o teste – passar batom em frente ao espelho, só isso – ele ficou perplexo com sua naturalidade e autoconfiança. Daí veio, para a equipe toda, o seu “Temos Alice!”

O que Salvá nutria por este filme era um amor muito grande. Paixão mesmo. Pena que Elisa, com o tempo, foi ficando egoísta e rancorosa (Alberto a traiu algumas vezes, e isso a magoou muito). Ela se coloca, muito espertamente, como roteirista do filme. Uma mentira deslavada. O que ela fez de especial, segundo o que ele me contou, com relação ao roteiro, foi ter criado um tipo de “roteiro paralelo” sobre o que a personagem Alice, que sumia de cena muitas vezes, estaria fazendo longe dos olhos do espectador. Um exercício interessante que o ajudou; um presente dela, como ela mesma disse a ele que era. Mas roteiro?!?! JAMAlS!!! Salvá foi roteirista e diretor do filme, e isto que ela fez foi feio, muito feio. Mas quando ele ficou doente, ela foi lá, visitou. E, no final, com todo mundo duro de Jó, ela pagou velório, cremação, tudo.

O trauma que ele guardou do filme foi um só: ter sido, até “Na Carne e na Alma”, o seu último longa-metragem. Nada a ver com o sentimento dele pela obra, que ele guardava numa caixinha especial, com muito amor, carinho e gratidão.

Octavio Caruso

Viva você também este sonho...

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