O Medo Devora a Alma (Angst Essen Seele Auf – 1974)
“A felicidade nem sempre é divertida.”
Há uma sequência neste belíssimo filme que sintetiza com perfeita simbologia o drama vivido pelos protagonistas, a senhora viúva Emmi (Brigitte Mira) e o imigrante marroquino Ali (El Hedi ben Salem).
Sentados do lado de fora de uma cafeteria, solitárias almas confidenciando o amor proibido pela sociedade, com o enquadramento reforçando que estão cercados opressivamente por mesas vazias e observados à distância pelos funcionários do estabelecimento que recusam o atendimento.
A cor das mesas e cadeiras: amarelo, representando o metafórico muro de covardia que intenciona destruir dois inocentes elementos unidos pelo amor nascido naturalmente após uma cortês dança em um bar, durante uma noite chuvosa.
Ele, desconfortável e gentil, lutando para se expressar melhor em uma terra estranha, enfrentando diariamente o preconceito dos alemães por ser negro e árabe. Ela, desprezada pelos filhos e invejada pelas despeitadas colegas de trabalho.
Apesar da grande diferença de idade, os dois se entregam em um relacionamento intenso que culmina no pedido de casamento que provoca um terremoto existencial no cotidiano do casal.
Em outro momento de simplicidade primorosa ambientado no jantar romântico que celebra a união, a câmera novamente escancara que, apesar da alegria compartilhada pelos dois, o sistema os isolou e fará de tudo para elevar os níveis de humilhação, até que eles entendam que não há espaço para sentimentos puros em um coletivo dominado pela hipocrisia.
A intenção é instigar o medo, que, como salientado lucidamente por Ali, “devora a alma”.
O comerciante que se recusou a atender o imigrante outrora, muda de atitude quando, induzido pela filha gananciosa, compreende que perdeu uma cliente generosa. A colega de trabalho volta a sorrir para Emmi somente quando enxerga nela a possibilidade de uma ajuda emergencial.
Um dos filhos, revoltado ao escutar a novidade, quebra a televisão da mãe, cena que sempre me remete à ideia de que ele, estúpido insensível, provavelmente culpa inconscientemente o entretenimento televisivo, a ilusão idealizada pela arte, por ter feito sua mãe acreditar que ainda era possível se apaixonar no crepúsculo da vida.
O próprio diretor vive o grosseirão e vagabundo marido de sua apática filha, o estereótipo do preconceituoso que apoia seu arraigado ódio na muleta católica, operando os maiores absurdos à sombra do enorme crucifixo. A direção de arte posiciona a imagem no cenário de forma que potencialize ainda mais sua função narrativa na cena, ressaltando, por contraste, a fragilidade da filha, simplesmente incapaz de entender e/ou apoiar a coragem da mãe.
O toque de gênio do roteiro ocorre no terceiro ato, após a mudança favorável de atitude das pessoas próximas, ainda que motivada por oportunismo. Emmi, já aliviada do peso da culpa, passa a objetificar o marido, chegando ao ponto de elogiar seus atributos físicos diante das amigas, que, sem timidez alguma, passam a tocar seu corpo com excessiva admiração.
A sequência é conduzida como se estivéssemos testemunhando a venda de um escravo nos tempos antigos. Ele se sente incomodado, acaba procurando afeto nos braços de uma mulher jovem. Ela, reconhecendo que deixou a vaidade falar mais alto, busca então fazer as pazes.
O desfecho presta homenagem ao melodrama dos melhores trabalhos de Douglas Sirk, sem se esquivar da árida realidade. O casal nunca será plenamente aceito no sistema, os problemas que enfrentam são cíclicos, o carinho mútuo é como o abraço de afogados.
Dirigido com o refinamento usual por Rainer Werner Fassbinder, “O Medo Devora a Alma” segue tão eficiente quanto no dia de sua estreia. Obra fundamental!
Cotação:
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Fascinante crítica que faz com que estejamos vendo minudentemente cena por cena, o filme está diante de nossos olhos mesmo que não estejamos vendo dado às observações aguçados, reais, fascinantes. Parabéns, Caruso, vc é o melhor, sempre!!!
Grato demais pelo carinho, querida Vilma.
Bjão!!