Séries

Crítica das duas temporadas da série “Anne With an E”, da NETFLIX

Anne With an E – Primeira Temporada (2017)

Como ainda não li o original literário “Anne de Green Gables”, de Lucy Maud Montgomery, o fator principal que me motivou a ver a série, além de ser a mais requisitada pelas leitoras, foi o envolvimento de Moira Walley-Beckett. Você provavelmente nunca escutou o nome da criadora de “Anne With an E”, mas ela foi produtora e roteirista de uma das melhores séries já feitas, “Breaking Bad”, produto radicalmente diferente em sua temática, algo que me deixou ainda mais curioso.

E, claro, a experiência de acompanhar a jornada da menina adorável de treze anos, cheia de sardas e sonhos, que, no século XIX, acidentalmente foi adotada por um casal de irmãos no interior da ilha de Prince Edward, uma das províncias do Canadá, foi extremamente satisfatória.

“As pessoas riem de mim porque eu uso palavras grandes. Mas se você tem grandes ideias, você tem que usar palavras grandes para expressá-las, concorda?”

É impressionante a forma como a fotografia de Bobby Shore captura com extrema sensibilidade o leitmotiv da obra, aproveitando nos enquadramentos a amplitude cênica, propondo analogia com o universo infinito de possibilidades “enclausurado” no corpo franzino da jovem Anne (Amybeth McNulty), a intensidade das cores e a elegância discreta na direção de arte de Andrew Berry e Aaron Noel refletindo a ambiguidade constante em conflito no mundo interno da menina, o medo nascido das cicatrizes da repressão no orfanato sendo usualmente subjugado pela força libertária criativa conquistada pelo amor à literatura. Ao ser inicialmente rejeitada por Marilla (Geraldine James) na nova casa, já que a senhora e seu irmão desejavam um menino para ajudar nos trabalhos braçais, ela não se vitimiza, muito pelo contrário, busca merecer o afeto que será arduamente conquistado.

Analisando friamente os aspectos técnicos, o roteiro é correto nos dois primeiros episódios, mérito principal da direção competente de Niki Caro (no primeiro) e Helen Shaver (no segundo), estabelecendo os personagens, elemento principal para garantir o necessário investimento emocional do público, mas derrapa um pouco nos três episódios seguintes, prejudicados também pela ausência de algum antagonismo na história (problema corrigido na segunda temporada), “barrigas” narrativas que quebram o ritmo exatamente quando o foco é o desenvolvimento dos personagens secundários, mas tudo se resolve nos últimos dois episódios, dirigidos respectivamente por Paul Fox e Amanda Tapping. O jovem Gilbert (Lucas Jade Zumann) poderia ter sido melhor desenvolvido, parece servir apenas como muleta específica em uma situação, depois é esquecido.

O desfecho da temporada também é um pequeno deslize, apostando todas as fichas em um gancho depressivo sem a mínima sutileza, quando poderia recompensar melhor o público com uma pegada mais sentimental e uma conclusão mais coerente em tom com o arco trabalhado. Algumas sequências mais refinadas em estilo podem passar despercebidas, mas o efeito dos truques atinge o espectador, como quando a câmera se posiciona em uma cena importante de forma que Matthew (R.H. Thomson) e um amor do passado, ainda que juntos no mesmo ambiente, sejam separados cruelmente pelos batentes de duas portas, reforçando visualmente a sensação de conexão sentimental perdida.

Não é uma obra-prima espetacular, mas cumpre com segurança sua função, sustentando-se nos ombros da protagonista de carisma irresistível. Entretenimento despretensioso e encantador para ser visto em família, já que celebra valores esquecidos em nossa sociedade.

Cotação: 

Anne With an E – Segunda Temporada (2018)

A evolução narrativa é facilmente perceptível já nos primeiros vinte minutos do episódio inicial, dirigido por Helen Shaver. Com três episódios a mais, há maior senso de unidade, com tempo suficiente para desenvolver bem os personagens secundários, como a nova professora (Joanna Douglas) que ousa na sala de aula, introduzindo métodos pouco convencionais, e nas ruas, ao andar de motocicleta e se recusar a utilizar espartilhos, ou Sebastian (Dalmar Abuzeid), negro marginalizado que trabalha num navio a vapor e faz amizade com Gilbert, ponto de partida para discussões interessantes sobre o racismo que se mantém, ainda hoje, como um câncer maligno na sociedade.

“Eu descobri que o amor não é igual para todo mundo. Ele vem de formas e jeitos diferentes para cada pessoa.”

O roteiro insere críticas contundentes sem perder a leveza, mostrando equilíbrio superior ao exibido na primeira temporada. Cole (Cory Gruter-Andrew), aluno tímido da classe de Anne, proporciona à trama o debate sobre os malefícios do bullying. Ele, assim como a colega, utiliza a arte como válvula de escape. Mais adiante, a subtrama expande ainda mais o tema abraçando a questão da homossexualidade reprimida. Vale ressaltar a reação da menina ao descobrir o segredo do rapaz, admirada pela pluralidade do amor, uma aula preciosa para grande parte dos adultos.

No zeitgeist atual da indústria, com a representatividade da mulher sendo amplamente discutida, há um viés na série que espertamente subverte o discurso feminista, injetando a delicadeza que normalmente é tida pelas ativistas como sinônimo de fraqueza. A pequena é levada a crer por sua vivência de humilhações diárias que é muito feia, incapaz de ser algum dia cortejada. O revide não está no ato de se aceitar com orgulho, o empoderamento dela é plenamente intelectual, já que ela obviamente tem um rosto lindo, o roteiro utiliza o fato dela ser ruiva como diferencial tolo no subjetivo padrão de beleza, evidenciando com leveza o absurdo inerente ao hábito de segregar por qualquer motivo.

O amadurecimento da série nesta segunda temporada é louvável. Aquilo que poderia ser tido como uma “Sessão da Tarde” inofensiva, ganha contornos corajosos e promissores.

Cotação: 

Octavio Caruso

Viva você também este sonho...

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