Séries

Crítica nostálgica da clássica série “Chaves” (1973-1979)

Chaves (El Chavo del Ocho – 1973-1979)

“Eu nunca quis que as pessoas acreditassem que éramos crianças, mas aceitassem que éramos adultos interpretando crianças.” (Bolaños)

O apelido Chespirito, “pequeno Shakespeare”, nasceu como reverência carinhosa à capacidade do jovem Roberto Gómez Bolaños em criar roteiros para cinema e televisão eficientes e tematicamente versáteis em curto espaço de tempo. Em 1968, aurora das transmissões independentes de televisão no México, o rapaz foi chamado como escritor para a realização de um programa que precisava dar certo, a pressão era grande, ele entregou “Los Supergenios de la Mesa Cuadrada”, já com seus colegas Ramón Valdés (Sr. Madruga), Rubén Aguirre (Prof. Girafales) e María Antonieta de las Nieves (Chiquinha).

O sucesso do projeto acabou garantindo maior liberdade criativa e a duração do programa dobrou. “Chaves” nasceu neste momento, um menino órfão de oito anos que descansa em um barril em uma vila simples, alguém que, apesar de não ter brinquedos e, na maior parte do tempo, passar fome, consegue ser feliz. O conceito era tão terno, o texto tão brilhante e a química do elenco tão certeira, que, após o cancelamento, ele ganhou um programa solo, já com novos personagens, vividos por Carlos Villagrán (Quico), Florinda Meza (Dona Florinda), Édgar Vivar (Sr. Barriga) e Angelines Fernández (Clotilde/Bruxa do 71).

O segredo do sucesso da série foi que os roteiros evoluíam temporada a temporada, as boas ideias eram retrabalhadas, logo, várias versões das esquetes foram filmadas. Não havia espaço para improviso, mas o elenco transmitia esta sensação descompromissada, apesar dos vários bordões, dava a impressão de que eles estavam se divertindo sem apego ao material, algo que só era possível exatamente pela segurança de todos com o texto, que, vale ressaltar, envelheceu bem demais, ao contrário de muitas séries cômicas do mesmo período. E esta entrega cativava o público de todas as idades e nacionalidades, que se identificava rapidamente com as situações apresentadas naquele microcosmo.

Entre uma gargalhada e outra, Bolaños inseria corajosa crítica social. Uma cena em particular, jamais vou me esquecer, demonstra bem este viés: os adultos estão confortavelmente sentados vendo televisão e discutindo as mazelas do povo, enquanto comem biscoitos. Chaves, sentado ao lado, morrendo de fome, aguarda esperançoso que sobre alguns para ele, mas nem é notado. O tom do hipócrita discurso socialista vai ficando cada vez mais intenso à medida em que as mãos vão rapidamente deixando a bandeja vazia. O menino, triste ao ver que só sobraram migalhas, abandona silenciosamente o local. O programa era transgressor, Fidel Castro proibiu a exibição de “Chaves” em Cuba por considerar subversivo demais.

Na semana do falecimento de Bolaños, escrevi um texto para minha extinta coluna no site da colega jornalista Anna Ramalho, abordando o desprezo dos pseudointelectuais com a arte dele. Faço questão de resgatar abaixo esta singela homenagem.

***

As redes sociais podem mostrar o lado mais generoso do homem, quando um compartilhamento em massa acaba ajudando alguma causa, mas também mostra o lado mais mesquinho e cruel. Existe algo chamado bom senso, uma noção básica de como se portar em certas situações, por exemplo, em uma nota sobre um falecimento. A internet se movimentou com a passagem de Roberto Gómez Bolaños em 2014, o mexicano criador do seriado “Chaves”. Um artista importante, que conseguiu fazer seu trabalho atravessar a fronteira de sua nação, encantando os brasileiros. Homenageado pelos seus conterrâneos com uma cerimônia belíssima, reunindo cerca de quarenta mil pessoas no Estádio Azteca. Comovido com a notícia, escrevi na época em meu perfil pessoal no Facebook:

“O meu avô materno adorava ver Chaves, os meus pais veem até hoje, eu cresci rindo muito com Roberto Gómez Bolaños. Três gerações tocadas pelo brilhantismo do humor ingênuo e simples deste mexicano. Vítima do preconceito de alguns, salientavam a pobreza dos cenários, a gaiola que não tinha pássaro, as paredes que se moviam quando batiam as portas. O foco do escritor Bolaños era o texto, a esperteza dos diálogos que nunca eram apelativos, a rara capacidade de, assim como seu ídolo Chaplin, inserir uma lágrima entre um sorriso e outro.

É válido salientar neste fenômeno a importância da excelente dublagem brasileira, liderada pelo saudoso Marcelo Gastaldi, nomes como Carlos Seidl, Nelson Machado, Cecília Lemes, Marta Volpiani, Helena Samara e Mário Vilela, que, com muita competência, defenderam este legado. Fiquei muito triste com a notícia, seus programas realmente me acompanharam em todas as fases da minha vida, especialmente na pré-adolescência. É difícil escrever algo que sintetize este sentimento, mas fico feliz de saber que ele recebeu, em vida, várias homenagens. Em uma nação de pouca memória como a nossa, os artistas normalmente falecem acreditando que foram esquecidos.

Parabéns aos mexicanos, que aprendamos com eles. Que novas gerações continuem sendo tocadas pelo humor imortal de Bolaños. Que nunca nos esqueçamos…”

Alguns minutos depois, enquanto passeava pelas postagens dos amigos virtuais, inclusive colegas veteranos da crítica, fui ficando cada vez mais chocado com frases do tipo: “Sinceramente, nunca vi graça nele”, “Acho esquisito adultos vestidos de criança”, “Vergonha alheia de quem chora o falecimento daquele chato”, “programa bizarro, nunca vi”, entre outras piores. Não eram simples comentários nas postagens de alguém, aquelas pessoas se sentiram motivadas a se manifestarem daquela forma indelicada sobre o artista.

Será que elas entenderiam atitude semelhante em um comentário sobre uma postagem delas a respeito de algum familiar? Imagine você, qual seria a sensação do indelicado ao ler: “Sinceramente, não conheço sua mãe, acho que você podia guardar o sentimento para você”. O indelicado não se preocupa com o pesar daqueles que eram conectados emocionalmente ao falecido, age com o intuito único de externar um sentimento baixo, por motivos complexos que Freud poderia analisar. Ele nunca comentou sobre seu pouco apreço pela obra do artista, mas escolhe exatamente o momento de sua passagem para publicar tal opinião.

Como sempre faço, tento aprofundar a discussão, ainda que sobre um tema que possa até parecer, para muitos, algo raso. Ao partirmos dos pequenos detalhes, dos mínimos gestos e atitudes, podemos entender como funciona a mentalidade destes humanos tão estranhos, desprovidos de empatia, que, exigem respeito e consideração dos outros, antes de cometerem equívocos grosseiros. Acho muito válido que se mantenha nas redes sociais aquele ensinamento de Pitágoras, que afirma: “Se o que tens a dizer não é mais belo que o silêncio, então cala-te”.

***

Em sua última entrevista para o Brasil, Bolaños, já bastante debilitado, deixou uma mensagem comovente: “Agradeço de todo o coração o que falam de mim no Brasil. Creio que nem mereço, digo isso sinceramente. Então agradeço muito mais. Amo vocês, seja como vocês são, como eu conheço vocês: muito alegres, muito brincalhões, bons, sejam muito, muito brasileiros. Brasil, amo vocês, eu te amo.”

Todos nós te amamos, Bolaños. Grato por ter feito, com sua arte, a nossa vida ser mais feliz. E não ligue para os intelectualmente inseguros que, por décadas de exibição no SBT, reduziram seu valor por ser incrivelmente popular, os mesmos que, após os programas serem comprados pela Globo/Multishow, confortavelmente passaram a chamar seu humor de genial, “não se junte com esta gentalha”. Bravo, Chespirito!

Cotação: 

Octavio Caruso

Viva você também este sonho...

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