Noite de Inverno em Gagra (Zimniy Vecher v Gagrakh – 1985)
Beglov (Evgeniy Evstigneev), ex-famoso dançarino de sapateado, leva uma vida discreta, mas sonha em repetir o sucesso dos anos 1950. A oportunidade virá quando o programa de TV “Nomes Esquecidos” informa que ele não está mais vivo.
É impressionante pensar que uma obra tão bonita seja desconhecida, eu te desafio a encontrar sequer uma análise crítica na internet. Assim como na própria trama, “Noite de Inverno em Gagra” sofre do mesmo problema de seu protagonista, a desvalorização da memória cultural no mundo atual, apenas o imediatismo representa lucro, apenas o que dá lucro tem valor. A cada filme que vejo do diretor russo Karen Shakhnazarov, mais me apaixono pela facilidade com que ele consegue explorar sentimentos profundos de forma leve.
O roteiro de Aleksandr Borodyanskiy, co-escrito pelo próprio diretor, traz várias cenas impecáveis em simbolismo e execução. O pifar da câmera que interrompe a filmagem da dança, logo na primeira cena em flashback, levando os colegas de funções diferentes à divertida união melodiosa, com entrega espontânea, genuína, conscientes de que nada daquilo estava sendo registrado. Quando a câmera volta a funcionar, o diretor dá o comando, a claquete é batida, mas há o corte para os créditos iniciais frios, ambientados no vazio da etapa menos glamourosa, a construção dos sets para o espetáculo moderno.
Em contraste, nas sequências posteriores em que vemos jovens dançarinos ensaiando a dança, à frente de uma esfinge com luzes coloridas piscantes (alegoria ao desrespeito com o antigo), o foco é dado à artificialidade do ritual, que perde totalmente o encanto (e a empolgação) ao término da coreografia que não permite improvisos. Os superiores precisam até bater palmas para pedir a atenção da garotada, não há dedicação sincera por parte deles, apenas estão cumprindo um dever profissional.
O protagonista verbaliza várias vezes a tristeza que sente por ser um defensor da arte esquecida do sapateado, seja de forma direta (“hoje em dia ninguém faz sapateado”), ou indireta (“agora fazem tudo com compensado, jogam um recheio, forram e dizem que é um sofá”), no seu olhar cansado é perceptível a dor da humilhação. Como pode um artista que foi tão respeitado no passado, ver a aproximação do crepúsculo de sua vida de forma tão modesta? Um homem mais jovem, Arkady (Aleksandr Pankratov-Chyornyy), procura o veterano querendo aulas de dança, a atitude dele é rude, grosseirona, ele claramente não enxerga aquela arte com o mesmo respeito que seu professor. Beglov tenta desestimular o interesse, mas precisa da remuneração, logo, engole o orgulho.
“O mais importante no sapateado é a ousadia”. Ele diz isto para o aluno, mas logo depois encara a cristalização de seu lema ao testemunhar um show de deselegância. A cantora arrogante, desapaixonada pela própria música que entoa com olhar perdido, frustrada com o material raso que aceitou adotar para garantir o sucesso, extravasa sua raiva na figurinista por causa de um simples chapéu. Beglov é o único no local com moral e integridade para enfrentar aquela farsa, mas a sua atitude impulsiva irrita a mulher e acaba causando sua demissão. O sistema não permite a verdade.
Ao ver em choque o apresentador da televisão afirmar que ele estava morto, enfatizando como ele era genial em sua área, o homem sente que o destino foi longe demais. A mesma mídia que hipocritamente o colocou para escanteio outrora, como peça enferrujada na engrenagem, só o valorizava agora enquanto carniça para os abutres do sensacionalismo barato. Não há mais elegância, não há mais respeito. E, no momento mais triste de sua vida, a sua memória busca refúgio na noite mais gloriosa de sua carreira, sem relação alguma com dinheiro, ou fama. A alegria simples e poderosa da dança com a pequena e amada filha.
Eu poderia selecionar vários momentos lindos, mas prefiro preservar um pouco da experiência para quem ainda vai conhecer esta pérola do cinema soviético.
Cotação:
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