O purismo é algo que me incomoda em qualquer área, as páginas da História humana ensinam que não há como evoluir sem aprender a se adaptar.
“Roma”, de Alfonso Cuarón, que ficou em primeiro lugar na minha lista de Melhores Filmes de 2018, foi lançado diretamente na Netflix, com exibição alternativa em poucas salas de cinema, algo que suscitou uma polêmica tola entre aqueles que ainda discutem se o futuro do jornalismo está na internet ou na mídia impressa. Já passou da hora dos conservadores entenderem que a experiência de ver o filme na sala escura acompanhado de estranhos não é a única forma de se apreciar uma obra. E, principalmente, que eles não são mais apaixonados ou melhores cinéfilos do que aqueles que preferem o conforto da sessão no lar, sozinhos ou acompanhados de seus familiares e amigos, com os olhos fixos em televisores com telas de 32, 42 polegadas ou projetores. A minha cinefilia foi alimentada na infância e adolescência pelas locadoras de vídeo, o meu amor por cinema é diretamente ligado às exibições na televisão.
Os críticos de cinema internacionais dos veículos mais respeitados recebem em suas casas DVD’s, os chamados “screeners”, dos títulos que irão analisar tranquilamente no melhor horário para eles, com direito a pausas, até revendo cenas, recurso que favorece qualitativamente o trabalho. O profissional brasileiro, que normalmente trabalha até altas horas da madrugada, luta para afastar o sono nas cabines de imprensa matutinas, entregando textos apressados e quase sempre rasos. Por este motivo, abandonei as cabines anos atrás, preferindo receber links das estreias direto das distribuidoras ou ver no cinema em horários mais confortáveis. Não seria melhor (e menos segregador, já que mais profissionais teriam acesso) que se adotassem os “screeners” por aqui?
Com relação à apreciação cinematográfica do público, trata-se de uma questão particular que deve ser respeitada, até porque é inegável que o conceito de ver filmes nos cinemas brasileiros foi sendo avacalhado nas últimas décadas devido à tremenda falta de educação de jovens e adultos, destruindo qualquer possibilidade de imersão emocional, um elemento fundamental na equação. O alto preço do ingresso não ajudou neste processo, já que os lançamentos logo são disponibilizados em home video e nas plataformas de streaming.
O brasileiro médio, que sofre para receber mensalmente um salário de miséria, precisa decidir entre pagar no escuro um ingresso de R$ 40,00 (mais estacionamento e lanche) para conhecer um filme que pode ser horroroso, ou pagar uma mensalidade de R$ 20,00 (sem adicionais) para ter acesso ao catálogo inteiro de filmes e séries, que pode ver quantas vezes quiser e nos horários que preferir. Se você não vive em uma bolha social com ar condicionado, nem pensou duas vezes.
É óbvio que a qualidade de som e imagem de uma sala de cinema não se compara ao melhor sistema audiovisual caseiro, a atmosfera é totalmente diferente, mas é maravilhoso termos opções e liberdade de escolha para variadas situações. Quem ama verdadeiramente o filme, não vai se importar se está consumindo ele em VHS, LaserDisc, DVD, Blu-ray, na sala de cinema ou no serviço de streaming, a pessoa vai simplesmente abraçar a experiência consciente dos prós e contras de cada formato. Se você está preocupado demais com o formato, já nasceu com o prazo de validade vencido.
Sobre a aceitação dos filmes lançados em streaming pelos acadêmicos (festivais, premiações consagradas etc.), quem se importa? Não é a sala de cinema que valida a qualidade de uma obra artística. Já cansei de escrever que estas premiações não são parâmetro de qualidade, são festas movidas a lobby e politicagem rasteira. Eles que sigam empoeirados, cheirando a naftalina, com seus rituais desgastados. Eu sou apaixonado por cinema e vou absorver todos os formatos possíveis. Eu prefiro ver uma pessoa interessada buscando o arquivo no torrent ilegal do que imaginar que ela não sente interesse algum por filmes.
A questão é mais complexa, especialmente quando se toca no baixíssimo nível educacional brasileiro, uma nação que pouco lê. Não considero válido apreciar um épico como “Lawrence da Arábia” em uma telinha de celular, mas aplaudo feliz o adolescente que tiver interesse em conhecer a obra através deste aparelho. A realidade é que existe um número considerável de pessoas que precisam traçar linhas imaginárias na areia, como autoafirmação pública de “superioridade”, menosprezando outrem. O bobinho que não aceita a existência (e a importância inclusiva) de filmes dublados, aquele mimadinho que faz campanha ideológica/política contra uma plataforma de streaming, em suma, tontos profundamente inseguros.
Qualquer tentativa de desprezar ou desmerecer a apreciação cultural neste país é pura arrogância e baixeza intelectual.
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