A Mula (The Mule – 2018)
Earl (Clint Eastwood) coleciona uma série de honras que vão desde prêmios por seus trabalhos como paisagista e decorador até o reconhecimento por ter lutado durante a Segunda Guerra Mundial. No entanto, foi aos 90 anos que conquistou algo surpreendente: ele foi preso por portar o equivalente a três milhões de dólares em psicotrópicos no seu carro, uma picape velha, no Michigan. O roteiro é inspirado em uma história real, que foi base para um artigo de Sam Dolnick no New York Times.
Antes da crítica objetiva, uma breve reflexão lúcida sobre a recepção negativa da obra como preconceituosa contra os mexicanos por uma parcela dos meus colegas norte-americanos. Sem entrar no mérito deste julgamento, que considero exagerado, vale ressaltar que é um equívoco tremendo inserir ideologia na equação da avaliação artística, não é justo com os esforços da equipe criativa, o profissional sério precisa utilizar seus critérios técnicos e emotivos na análise do produto final, ao invés de tentar ensinar para o diretor como ele deveria ter realizado sua função, como ele deveria ter se expressado na obra.
Aos olhos de um crítico responsável, por exemplo, o clássico “O Nascimento de uma Nação” (1915), de D.W. Griffith, jamais será menosprezado em seus valorosos méritos, apesar de seu tenebroso tema. O conceito de se calar/depreciar, em suma, tentar deslegitimar diferentes opiniões na arte serve apenas aos medíocres com linhas de pensamento infantilizadas e, por conseguinte, com apreço romantizado por sistemas ditatoriais comunistas. Dito isto, sigamos para o que realmente importa, a eficiência de “A Mula”, novo trabalho do incansável e sempre competente Clint Eastwood.
É, sem sombra de dúvida, o seu melhor momento na direção desde “Gran Torino” (2008), impecável tecnicamente, com um roteiro, de Nick Schenk, que subverte a persona imortalizada pelo protagonista ao injetar extrema vulnerabilidade, algo que vai além da óbvia fragilidade física. É, acima de tudo, um desabafo audiovisual em tom testamental sobre a inversão de valores na sociedade, os diálogos defendem sua visão sociopolítica pessimista, especialmente no tocante à guerra contra os psicotrópicos, mas não resvalam no panfletarismo entediante, a precisão cirúrgica da edição mantém o ritmo instigante, com um senso de humor encantadoramente ranzinza emoldurando as situações absurdas em que o nonagenário acaba se metendo.
O estilo econômico do diretor está mais afiado que nunca, sem gordura extra, sem firulas técnicas. Já como ator, há uma ousadia louvável ao abraçar nuances sutis de atuação ao interagir nos variados núcleos, a família fragmentada (simbolizada na ex-esposa, vivida por Dianne Wiest), as figuras de autoridade policiais (o principal, vivido por Bradley Cooper) e o violento grupo criminoso. As emoções conflitantes, o peso da culpa com seus entes queridos e o orgulho natural acariciado pelo sucesso na atividade ilegal, transmitidas de forma coerentemente tímida, gestual reduzido, algo que é favorecido pelo rosto castigado, compondo um indivíduo verdadeiramente fascinante.
Se esta for a despedida de Eastwood das telas, o medalhão do cinema merece respeito por decidir sair sem se dobrar ao terrível politicamente correto, desprezando as tolas patrulhas imediatistas midiáticas. Como na bela canção que finaliza a trama, “Don’t Let The Old Man In” (de Toby Keith), a lenda viva resiste às intempéries, encara sorridente o horizonte e honra o espírito essencialmente jovem de sempre desafiar as convenções.
Cotação:
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