Críticas

“Engraçadinha Depois dos Trinta”, de J.B. Tanko (+ entrevista exclusiva com Vera Vianna)

Engraçadinha Depois dos Trinta (1966)

No Rio de Janeiro, a adolescente Silene (Vera Vianna) é abordada na rua por Odorico Quintela (Fernando Torres), que pede informações sobre a sua mãe Engraçadinha (Irma Álvarez, dublada por Glauce Rocha). Os dois dirigem-se para o subúrbio de Vaz Lobo onde Silene vive. Odorico fala para Engraçadinha e seu marido, Zózimo (Nestor de Montemar), que era amigo do pai dela e tenta seduzir a mulher casada.

A continuação de “Asfalto Selvagem”, lançado dois anos antes, “Engraçadinha Depois dos Trinta” é um trabalho tecnicamente superior do competente diretor croata J.B. Tanko, com o próprio autor Nelson Rodrigues ficando responsável pelo argumento e pelos diálogos, além de contar com uma atuação brilhante do grande Fernando Torres e o charme irresistível da belíssima Vera Vianna (desta feita, como a filha de Engraçadinha, papel que defendeu no anterior).

***

Eu convidei a minha amiga, a querida e talentosa Vera Vianna, para enriquecer este texto com suas lembranças das filmagens, um material exclusivo para o “Devo Tudo ao Cinema”:

Vera Vianna com Cláudio Cavalcanti em cena de “Engraçadinha Depois dos Trinta”.

“J. B. Tanko, um polonês que se radicou no Brasil e virou diretor de cinema, me convidou para fazer então a filha da ENGRAÇADINHA, no filme que seria a continuação do ASFALTO SELVAGEM, e virei então Silene, a filha meio problema. Trabalhar aos 18 anos com um elenco de profissionais experientes e já famosos foi meu segundo desafio. Ser dirigida por TANKO de novo, foi um presente. Era uma doce pessoa, que, apaixonado por Nelson Rodrigues, era também apaixonado pela personagem, na minha opinião, uma das mais ingênuas e coerentes dentro do mundo Rodriguiano.

Ela beira a normalidade, fato não muito usual no mundo do dramaturgo. A minha relação com o diretor foi maravilhosa. Ele me exigia bastante, até porque eu era uma atriz inexperiente, inventada por eles. A minha faculdade foi exatamente enfrentar as câmeras, como aliás era costume na época (não existiam muitas escolas de formação de atores), na verdade, Dulcina de Moraes era uma das únicas. E lembro que, contrariando a família, fiz penhor de uma joia e paguei o curso. Único que fiz. O sonho já transitava nesta cabeça. A sorte me fez ser lançada como esta linda personagem que adoro, a sorte me fez seguir na carreira.

O elenco todo era muito carinhoso comigo. Fernando Torres, já um grande ator e depois diretor, foi de grande generosidade e tempos depois me elogiou muito, ao encontrá-lo, dizendo: Você é uma atriz nata, visceral. Cláudio Cavalcanti também me acolheu e nos tornamos amigos depois para sempre. Enfim, Irma Álvarez, que fez então meu papel depois dos 30, lembro que era uma delicada e deliciosa pessoa. Assim, nos dois filmes, fui muito bem aceita, e tomei algumas broncas do polonês, que sempre acabava me divertindo. Se eu o contestava, ele me dizia: Sarita Montiel (que ainda era, acho, estrela na época) me ouve! – E ele me pedia: Não faz boca de peixe. – Era um bico com que terminava às vezes alguma frase. Boca de peixe e Sarita Montiel passaram a ser suas frases prediletas para me chamar atenção.

Mas isto tudo me divertia e me deixava orgulhosa, por estar ali no meio das feras, sendo respeitada como atriz. O cinema nacional era profissão de sonhadores e loucos. E sempre com baixo orçamento, se improvisava muito, e a criatividade era item indispensável. Belos tempos, de um cinema feito por gente que verdadeiramente amava cinema e fazia qualquer coisa para conseguir ter uma câmera, holofotes e filme virgem para tornar realidade os sonhos. Até de graça trabalhávamos, se preciso fosse.

Então, caro Octavio Caruso… DEVO TUDO AO CINEMA. Que continua sendo a minha escolha dentre todas as formas de atuar. É raro o dia em que não vejo um filme. O meu antídoto, meu combustível, meu escape, minha cura. Paixão total!”

A querida Vera Vianna em foto recente.

***

Citada por alguns colegas críticos à época de forma pejorativa como uma “neochanchada”, basta um olhar mais atento e carinhoso para constatar que a tremenda má vontade de críticos e cineastas com obras populares escondia boa dose de inveja profissional. Analisados hoje, muitos dos títulos nacionais incensados pelos “intelectuais furados” (nas palavras de Mazzaropi) servem apenas como antídotos infalíveis para insônia, sem alma, sem coração. E, vergonhosa consequência deste desprezo, boa parte dos nossos filmes, como este, segue sem restauração, com péssima qualidade de som e imagem. Como explicar uma nação que não respeita sua memória cultural?

Um toque esperto é compartilhar frequentemente com o público os pensamentos do falastrão Odorico através da narração em off, criando sequências maravilhosas como aquela durante um tenso passeio de táxi, em que ele tenta apartar a briga de Engraçadinha e Silene, fingindo solidariedade enquanto lamenta o valor que vai gastar na viagem e pensa apenas na televisão que vai dar de presente às duas, método para garantir que a mais velha traia o marido, e, quem sabe, facilite o seu caminho até a ninfeta. A objetividade da situação desafia com leveza o conteúdo espinhoso, a execução da cena é deliciosamente hilária.

Há uma brincadeira com o filme francês “Os Amantes”, de Louis Malle, obra que causou polêmica na época, que aqui vira “Os Amorosos”. Em um momento surrealista que antecipou a magia de “A Rosa Púrpura do Cairo”, de Woody Allen, vemos Odorico na plateia se imaginando como o protagonista na tela grande, aos beijos com sua musa.

Vale destacar também a bonita sequência do beijo na chuva, entre Engraçadinha e o funcionário do Itamaraty (Oswaldo Loureiro), que representa o desabrochar libertário da mulher, enfadada no relacionamento desgastado com o marido e desesperançada em saber que os flertes do patético procurador Odorico, após a explosão do desejo dele saciado, terão o mesmo fim, refletindo a visão pessimista de Rodrigues sobre o amor conjugal. Ela toma a decisão mais importante em sua rotina tão banal, viver plenamente o momento.

O clássico de Tanko, diferente de versões posteriores da obra em cinema e televisão, sempre enfatizando os elementos apelativos do sexo, entende que a essência da trama é puramente romântica.

Cotação: 

Octavio Caruso

Viva você também este sonho...

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  • ENCANTADA!!! Adorei a critica, inteligente e sensível, a homenagem, esse carinho todo com que você conseguiu me acordar hoje, Muito Sucesso para esse site Maravilhoso, que não nos deixa esquecer, NADA sobre TUDO, que queremos e devemos saber sobre Cinema. AVANTE! Adoro seu trabalho, bjsss e OBRIGADA!

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