Críticas

“Abrigo Nuclear”, de Roberto Pires (+ Entrevista com Crisna, a filha do diretor)

Roberto Pires foi um dos diretores brasileiros mais importantes, alguém que apostava no cinema de gênero, com personalidade, recusando-se a “bater ponto” com colegas que colocavam a militância política acima de tudo, em suma, um artista que verdadeiramente amava a arte e, principalmente, apreciava a coragem estética e temática. Com “A Grande Feira” (1961), sucesso retumbante de bilheteria (há relatos de que bateu até “Ben-Hur”), plantou as sementes do Cinema Novo, ainda que raramente seja lembrado pelos cineastas que se apropriaram ideologicamente do movimento nos anos seguintes.

Em mais uma entrevista exclusiva para o “Devo Tudo ao Cinema”, conversei com sua filha, Crisna, fotógrafa extremamente competente, sobre o legado de seu pai, falecido em 2001. E, ao final, um texto sobre o meu filme favorito em sua cinematografia: “Abrigo Nuclear”, corajoso libelo antibelicista produzido em pleno período de Guerra Fria, enquanto o Brasil fechava com a Alemanha um acordo para a construção de duas usinas nucleares.

O – Como nasceu a paixão de seu pai pelo cinema? Você se lembra de histórias que ele contava sobre a relação dele com os filmes na infância?

C – Desde criança minha avó levava ele ao cinema com muita frequência, ele virou um fã e começou muito cedo a sonhar em produzir seus filmes.

O – Talvez alguns de meus leitores não conheçam o aspecto inventivo de seu pai, conhecido como o “mago do cinema”, ele, por exemplo, criou a lente anamórfica Igluscope. Conte mais sobre este lado dele e sobre o processo que culminou na invenção.

C – Tem muitas coisas que eu não sei dizer pois não era nascida ou era muito criança, mas ouvi muitas histórias e uma delas é que meu pai criou essa lente e anos mais tarde vieram norte-americanos aqui ver como ela funcionava, depois patentearam a lente nos EUA.

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Filho de comerciantes, Roberto, autodidata na área do cinema, passou boa parte da juventude ajudando o pai na Casa Mozart, onde se tornou técnico em ótica. Com o salário, comprou equipamentos e películas reversíveis para a realização dos curtas-metragens “O sonho” e “O Calcanhar de Aquiles”, ambos de 1955. Com o conhecimento adquirido sobre ótica, ele desenvolveu a Igluscope, um tipo de lente anamórfica que permitia filmar em Cinemascope, que não existia no país. Com a repercussão positiva de seus primeiros trabalhos, ele fundou a produtora Iglu Filmes e conseguiu apoio de alguns empresários locais. Adquiriu uma câmera 35 mm, adaptou sua Igluscope, e iniciou as filmagens de “Redenção” (1958), que inaugurou a produção de longas-metragens na Bahia.

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O – Como você enxerga em retrospecto a importância de seu pai na carreira de Glauber Rocha? Tem algum caso curioso/engraçado envolvendo a parceria deles?

C – Eu era criança na época em que meu pai estava trabalhando com o Glauber. A única coisa que me lembro é que eu ia fazer figuração em uma cena do filme “A Idade da Terra”, eu me vestiria de índia, tinha que ficar só com a sainha sem calcinha, e, com uns 6, 7 anos, eu não gostei dessa ideia, daí desistiram de mim (risos). Fora isso, ouvi anos atrás que meu pai foi o responsável por impulsionar alguns filmes do Glauber para que ele conseguisse terminar de fazer. Tudo começou com “Barravento” (1961), o primeiro longa-metragem do Glauber, feito com recursos obtidos pela Iglu com a produção de cinejornais.

O – Os acadêmicos, em geral, desprezam o cinema de gênero (atitude que considero tola), quase sempre superestimam projetos umbilicais e politizados. Ele, pelo contrário, abraçava os gêneros, como a ficção científica (“Abrigo Nuclear”) e o suspense (“Máscara da Traição”). Quais eram os filmes favoritos dele (fora os brasileiros)?

C – O meu pai nunca fez filme com viés político e nunca se envolveu em questões políticas, ele não usava o cinema como muleta, o que ele amava era contar histórias. Ele gostava de tudo, especialmente ficção científica e suspense, amava os filmes do Hitchcock. Quando eu entrava no quarto dele, sempre pegava ele vendo um canal por assinatura que só passava estes clássicos.

O – Uma coisa que admiro no seu pai é a forma como ele pensava cinema como indústria, ele entendia a importância de fazer filmes com apelo popular (sem ser populista), ao invés de focar em projetos umbilicais (como parte de seus colegas do mesmo período). Como você vê esta questão?

C – O que sempre percebi é que meu pai gostava de abordar temas sobre o futuro da humanidade e ele pesquisava muito sobre a contaminação radioativa. Por isso ele fez o “Abrigo Nuclear”. Quando aconteceu o acidente de Goiânia ele correu para a cidade para saber de todos os fatos e começou a escrever o filme. É um tema que deixava ele muito empolgado.

O – Eu, como cineasta independente, tenho seu pai como um modelo de como trabalhar com garra, produzindo “na unha”. Fale um pouco sobre este aspecto da obra dele, a paixão que fazia com que ele acreditasse no sonho e fizesse tudo praticamente sozinho. E, complementando, você acredita que este pioneirismo dele (em uma área infelizmente marcada pela inveja profissional) prejudicou (ou dificultou) ele de alguma forma?

C – Tem uma matéria de jornal aqui na Bahia que tratava ele como artesão de sonhos. O meu pai criava tudo que precisava para uma produção. Ele roteirizava, conseguia os recursos, dirigia e finalizava os filmes. Outra coisa que percebia nele era a ingenuidade em relação às pessoas. Ele acreditava muito no ser humano e não via maldade em ninguém. Quebrou a cara muitas vezes. Sei de algumas histórias.

O – Eu tenho fascínio pelos hábitos particulares de grandes mentes criativas. Qual estilo de música ele preferia (quais cantores, bandas…)? Quais eram seus livros favoritos? Ele era uma pessoa tímida, extrovertida, em suma, como era o “pai” Roberto Pires?

C – Nunca vi meu pai ouvindo música nem torcendo para futebol, nem na Copa. A vida de meu pai era mesmo sonhar e vivenciar o cinema. Realizar! Ele na vida íntima era muito reservado. Sempre dentro do quarto com a TV e a sua máquina de escrever. Eu me lembro de ter visto livros com ele mas não lembro os títulos. No convívio social era sempre espirituoso, alto astral, ele tinha um visão positiva demais da vida. Para ele, nada daria errado.

O – Gosto muito de “Abrigo Nuclear”, meu gênero de formação como cinéfilo é a ficção científica e o terror, lembro que quando vi pela primeira vez o filme, fiquei surpreso, e, acima de tudo, esperançoso, havia algo no gênero feito com qualidade neste país. “Parada 88 – O Limite de Alerta” (1977), de José de Anchieta, tinha boas intenções, mas uma fraca execução. Também gosto muito de “Tocaia no Asfalto”. Qual é o filme do seu pai que você mais gosta (e a razão)?

C – Gosto muito de “Máscara da Traição”, “Césio 137” e me emociono muito com “Abrigo Nuclear” porque tem participação dele em várias cenas. É muito legal recordar meu pai vendo sua própria imagem. Amo!

O – Crisna, por gentileza, deixe uma mensagem final para o meu público, que, com certeza, aprecia e respeita o legado de seu pai.

C – Sou super suspeita, mas meu pai era uma pessoal de alma boa que Deus colocou nesse mundo. Para quem não conhece Roberto Pires, digo que ele era o maior sonhador que já conheci na vida. Acredito que ele foi muito feliz, pois realizou vários dos seus projetos. Vale a pena conhecer um pouco de sua história e ver seus filmes.

Abrigo Nuclear (1981)

No futuro, com a superfície da terra devastada pela radiação atômica, os sobreviventes da humanidade se protegem em instalações subterrâneas mantidas com energia de usinas nucleares. Os habitantes são controlados com mão-de-ferro pela autoritária comandante Avo (Conceição Senna), que esconde de todos que um dia os humanos habitaram a superfície. 

Roberto Pires já falava abertamente na década de 70 contra a utilização da energia nuclear, logo, foi algo natural ele se reunir com Orlando Senna para escrever o roteiro de “Abrigo Nuclear”, que foi produzido com baixíssimo orçamento e muita criatividade, com amigos e familiares no elenco, utilizando material reciclável, com direito a uma nave espacial construída no quintal de sua casa, limitação que coube como luva na proposta pós-apocalíptica da trama.

A maneira com que o texto é defendido pelos personagens, robótica, artificial, complementada pelo ritmo propositalmente lento, remete à “THX 1138”, de George Lucas, evidenciando a desumanidade no distópico cenário.

Pires vive o operador Lat (provável referência ao renomado físico brasileiro César Lattes, que ajudou como consultor informal), que, após voltar de uma missão na superfície com uma verdade indesejada pela comandante, passa a ser violentamente perseguido por, nas palavras dela, “perturbar o sistema com notícias alarmantes”, o típico comportamento totalitário que nega o erro e que, de forma assustadoramente profética, tomaria as manchetes mundiais da vida real cinco anos depois, vergonhosamente protagonizado pela União Soviética socialista no desastre de Chernobyl.

O desfecho, com Norma Bengell didaticamente transmitindo uma bonita mensagem ecológica, carrega uma nota esperançosa, mas, ao mesmo tempo, melancólica. Uma pérola que merece ser redescoberta.

Cotação:

Octavio Caruso

Viva você também este sonho...

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