Críticas

Trilogia da Guerra, de Roberto Rossellini

ROMA, CIDADE ABERTA (Roma città aperta – 1945)

Durante a ocupação nazista em Roma, comunistas e católicos se unem na resistência. Os alemães perseguem um dos líderes, Giorgio, que conta com a ajuda de amigos e de um padre. Com roteiro coescrito por Federico Fellini, este pungente drama filmado no calor do conflito e nas ruas da Roma ocupada se tornou uma referência obrigatória para os novos cinemas. Grande Prêmio no Festival de Cannes.

Eu costumo dizer que quando um estudante formal de cinema passa a frequentar as aulas e, só então, entra em contato com os medalhões mundiais, como “Roma, Cidade Aberta”, não importa a reação que terá, já é um sinal de que não é vocacionado.

Estes filmes não podem ser variações do clássico “Dom Casmurro”, que o adolescente lê na escola, sem estofo existencial para plenamente absorver seus temas, apenas como obrigação para tirar boas notas e passar de ano. Se assim for, as chances são grandes de que o aluno ainda saia reclamando de que é chato, incomodado por ser em preto e branco, porque simplesmente não valoriza a memória cultural, pega o diploma e joga atrás de suas coleções de bonequinhos de super-heróis. O autodidata verdadeiramente apaixonado, garimpeiro por natural curiosidade, não apenas conhece estas obras desde cedo, como vai além, buscando compreender o contexto sociopolítico em que foram criadas.

Após o fim da guerra, em meio aos destroços da cidade e sem dinheiro, Roberto Rossellini recebeu o apoio de uma senhora de origem nobre, interessada em financiar um documentário sobre um padre católico que foi assassinado pelos alemães. No tempo que levou para ele começar a escalar a equipe, ela demonstrou interesse em outro tema, as crianças italianas que resistiram bravamente à violência dos nazistas. O colega Fellini, que estava ajudando na produção, sugeriu que, ao invés de dois documentários, ele devia se concentrar em um longa-metragem que combinasse as duas ideias. O orçamento prometido pela senhora não foi suficiente, o que se mostrou um desafio ainda maior, agregando à crueza de estilo que se tornaria o símbolo do que, no ano seguinte, após fracassar em seu próprio país, os críticos franceses, liderados por André Bazin, batizariam como Neorrealismo Italiano.

A opção acertada de, com exceção de Aldo Fabrizi (Padre Pietro Pellegrini) e a grande Anna Magnani (Pina, a corajosa mãe viúva, protagonista da cena mais emblemática), formar um elenco de amadores, gente do povo, seguindo a intuição e permitindo total improviso, fez com que o resultado chocasse exatamente pela incrível naturalidade. Todos, inclusive o próprio diretor, sofreram traumas absurdos durante a guerra, tristeza recente que alimentava as situações melodramáticas propostas pelo roteiro, não havia necessidade de forjar o tom apocalíptico, aqueles indivíduos se mantinham de pé pelo orgulho da sobrevivência. Livre das amarras narrativas convencionais, Rossellini objetivava apenas a resposta visceral do público, desejava que, ao final da sessão, o espectador estivesse exaurido física e psicologicamente, tanto quanto seus personagens.

É impressionante como o filme se sustenta em revisão, segue forte como da primeira vez em que tive contato com ele, após ter lido matéria na revista “Cinemin”, alugado na extinta “RG Vídeo” de Vila Isabel (RJ), em VHS, na pré-adolescência.

PAISÀ (1946)

Paisà traz seis episódios que mostram a luta das tropas aliadas para libertar diferentes regiões da Itália do jugo nazista, entre 1943 e 1944. São histórias de amor, amizade e lealdade, que focalizam o relacionamento do povo italiano com os soldados estrangeiros. Federico Fellini participa do roteiro enquanto Giulietta Masina faz sua estreia no cinema. Indicado ao Oscar de Melhor Roteiro.

Apesar de ser o menos eficiente da trilogia, prejudicado pela longa duração e pela inconsistência natural em todas as antologias, “Paisà” entrega uma experiência emocional inesquecível. Novamente utilizando boa parte de amadores no elenco, mas com um orçamento maior.

Os seis episódios independentes entre si, roteirizados por Sergio Amidei, Marcello Pagliero, Federico Fellini, Klaus Mann, Alfred Hayes e Vasco Pratolini, conectados por registros reais do conflito, abordam o relacionamento entre a Itália e os Estados Unidos durante a ocupação nazista na guerra. Os obstáculos culturais, a degradação existencial e seus efeitos, a necessidade da união em momentos extremos e as eventuais traições.

Se alguns segmentos envelheceram mal, ainda me emociono com o terceiro, ambientado em Roma, em que acompanhamos um soldado bêbado que sente saudade de um antigo amor e a prostituta que o acolhe em seu quarto. O desenrolar deste drama durante uma longa noite é surpreendente, conduzindo ao desfecho amargo, imagem que provavelmente ficará em sua mente por muito tempo.

Vale destacar também o uso inventivo da ótima trilha sonora composta pelo irmão do diretor, Renzo Rossellini.

ALEMANHA, ANO ZERO (Germania anno zero – 1948)

Na cidade de Berlim em ruínas, logo após o fim da Segunda Guerra, Edmund, um garoto muito pobre, trabalha para sustentar o pai doente e os irmãos mais novos. Um dia, ao encontrar seu ex-professor, comenta da situação do pai e entende ter recebido um conselho para matá-lo. Atenção para um dos finais mais impactantes do cinema. Grande Prêmio no Festival de Cinema de Locarno.

O meu filme favorito na trilogia, o mais ousado em sua proposta, e, ao mesmo tempo, o mais despretensioso, colocando o peso do mundo nos ombros de uma criança, o pequeno Edmund.

O pesadelo compartilhado por todos, despidos de classes sociais, iguais na miséria. Após retratar a Itália em ruínas, o diretor se volta à Alemanha, e, principalmente, foca sua atenção nas agruras de um indivíduo, ao invés do panorama humano complexo dos dois filmes anteriores. Esta opção potencializa a catarse emocional e enaltece o aspecto embutido no título, testemunhamos, apesar da tristeza, um momento de reconstrução da sociedade, sem negar os erros de outrora, sacrificando a pureza em prol de um amanhã amadurecido, com suas cicatrizes expostas.

O desfecho é devastador, sem concessões, inesquecível, um dos momentos mais importantes da história do cinema.

Octavio Caruso

Viva você também este sonho...

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