Críticas

“Meu Nome é Dolemite”, de Craig Brewer, na NETFLIX

Meu Nome é Dolemite (Dolemite is My Name – 2019)

Quando sentiu que Hollywood havia fechado suas portas, o multitalentoso Rudy Ray Moore (Eddie Murphy) desenvolveu seu próprio trabalho, o filme “Dolemite”.

Rudy Ray Moore é como Ed Wood, Tommy Wiseau e tantos outros nomes infames da indústria, alguém que acreditou em seu potencial e, sozinho, metendo o pé na porta dos fundos, com dinheiro apertado do próprio bolso, entrou para a história do cinema.

Ele, músico frustrado e comediante de meia-idade, faria depois outras pérolas blaxploitation, como “Petey Wheatstraw” (1977) e “Disco Godfather” (1979), mas foi com “Dolemite” (1975) que sua vida mudou, o mais improvável galã durão bateu de frente nas bilheterias com os consagrados Richard Roundtree, Jim Brown e Fred Williamson. Eddie Murphy presta homenagem ao seu saudoso ídolo, esbanjando tangível paixão em cada cena.

A direção de Craig Brewer entende o tom proposto pelo roteiro da dupla Scott Alexander e Larry Karaszewski, responsáveis por “Ed Wood” e “O Mundo de Andy”, brilhantes cinebiografias sobre artistas que pensavam fora da caixa. Não há necessidade de firulas técnicas, a história real, por si só, já é suficientemente absurda, logo, o foco é direcionado à resiliência do protagonista e a maneira teatralizada que encontrou para viabilizar seu sonho profissional.

A reconstituição de época é impecável, assim como o resgate do espírito do período, quando os engravatados brancos dos estúdios enxergaram uma possibilidade de lucrar alto com o crescente orgulho suscitado pelos movimentos de consciência negra, produzindo a toque de caixa, sem refinamento técnico, tramas policiais simplórias com muita sensualidade e violência, protagonizadas por heróis negros. Quando Rudy entrou na jogada, o Blaxploitation já estava consolidado, passível de ser parodiado em seus exageros, caminho mais fácil, principalmente levando em consideração a falta de experiência dos envolvidos na arriscada empreitada. Não importava que seu herói sequer tivesse noção de como socar alguém, ele, na tela grande, resolveria tudo com a destreza de um guerreiro shaolin.

Wesley Snipes vive D’Urville Martin, o figurante inglório de “O Bebê de Rosemary” que é alçado por puro acaso ao posto de diretor, missão que, vale ressaltar, ele cumpre visivelmente contrariado. É hilária a maneira como ele é retratado, afetadíssimo, arrogante, já se considerando parte de uma casta superior. Da’Vine Joy Randolph reveste a sua Lady Reed com tocante vulnerabilidade, apesar de ser apresentada na trama levando à nocaute um homem. Ela, acima do peso, longe de ser o padrão de beleza da sociedade, vira atriz da noite para o dia, conduzida por Rudy, encontrando nesta amizade sincera a força necessária para reconstruir sua autoestima. Destaco a ótima versão brasileira, capitaneada pelo dublador Mario Jorge, que está no inconsciente coletivo da geração que cresceu com as comédias de Murphy na “Sessão da Tarde”.

O ponto principal é a garra que impulsiona Rudy e sua exótica equipe, contra todas as probabilidades. Completar o filme se torna uma missão quase religiosa. Cada “não” que recebe abala sua resistência, faz lembrar a infância triste com seu pai agressivo, mas ele percebe que precisa se manter na luta também para proteger seus amigos, novos e antigos, por conseguinte, abraça de corpo e alma o personagem caricato que criou como artifício para driblar a insegurança nos palcos. Ele se reinventa e, neste processo, ressignifica a vida de todos à sua volta.

A obra não representa apenas o retorno triunfal de Eddie Murphy e o resgate reverente da era de ouro do subgênero Blaxploitation, com contagiante senso de humor, “Meu Nome é Dolemite” é, acima de tudo, uma linda homenagem aos guerreiros do cinema independente.

Cotação:

Aproveitando o ensejo, resgato abaixo o texto que publiquei em 2015 sobre o filme original:

Dolemite (1975)

Dolemite é um malandro que acaba sendo pego em uma armadilha do seu rival Willie Greene, passando vinte anos na cadeia. Um dia, sua parceira de negócios o ajuda a sair da prisão para que ele possa não só conseguir suas posses de volta, como também se vingar de Greene.

O herói, vivido pelo comediante Rudy Ray Moore, é um rapper com barriga de chope, um malandro protegido por garotas da vida treinadas nas artes marciais, um mestre na arte de acertar seus oponentes com golpes de karatê à distância, puro poder de sugestão, já que eles não chegam nem perto do corpo das vítimas. Esta atitude, uma espécie de desleixo fascinante, pode ser sentida em todos os aspectos do filme, como nos microfones que invadem várias cenas.

O tiroteio final, clímax da trama ambientado no quarto de hospital, consegue resultar em um dos momentos mais confusos no subgênero, graças ao posicionamento da câmera, que, ao que tudo indica, não tinha ideia de qual seria a coreografia adotada pelos atores.

O microfone acaba se tornando mais um personagem, enquanto tentamos compreender a lógica da situação, já que o roteiro deve ter sido escrito por mãos diferentes, em tempo real. As cenas quentes, ponto fundamental no subgênero, são iluminadas e atuadas de forma que ficam parecendo um pesadelo bizarro.

Há um longo interlúdio musical, outro ponto fundamental, porém, protagonizado por uma banda terrível, um castigo para qualquer pessoa com um mínimo de bom gosto. Nada faz sentido, o que é um tremendo mérito. O que importa em um bom blaxploitation é o nível de audácia da proposta, a cara de pau, a malandragem da técnica, superando o baixíssimo orçamento, elementos dominantes neste projeto.

“Dolemite”, dirigido por D’Urville Martin, também consegue ser genuinamente engraçado, como quando o padre mulherengo e contrabandista de armas solta esta pérola para seus fiéis: “Vejam o escândalo Watergate. Se o líder da nossa nação está roubando e escapando ileso, que diabos eles esperam de nós?

Octavio Caruso

Viva você também este sonho...

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