Whisky (2004)
Para impressionar a família, o dono de uma fábrica finge ser casado com uma de suas funcionárias, transformando radicalmente a vida desse suposto casal.
Os roteiristas/diretores Pablo Stoll e Juan Pablo Rebella, com auxílio de Gonzalo Delgado, homenageiam o estilo do finlandês Aki Kaurismäki nesta pérola minimalista do cinema uruguaio, premiada em Cannes, Guadalajara, Chicago e Gramado.
A obra, que conheci à época em VHS lançado pela California Filmes, também foi a mais votada em uma enquete durante o Festival de Valdivia, no Chile, como a melhor produção latino-americana realizada entre 1993 e 2013. A cinematografia do país não é muito expressiva, mas “Whisky” atravessa a fronteira comercialmente pela excelência de sua forma, mais do que por seu conteúdo, uma trama que conquista o público gradativamente pela delicadeza simples, sem concessões melodramáticas, com câmera fixa em tripé e pouquíssimos diálogos.
A tremenda ironia, os protagonistas trabalham em uma fábrica de meias, o aquecer dos pés contrastando com a vida intensamente fria. Nos primeiros vinte minutos, a montagem de Fernando Epstein insere várias vezes a operação das máquinas, enfatizando a analogia de uma rotina sem vida, rimando imageticamente com as repetições conscientes de gestos de pura gentileza e cuidado da funcionária Marta (grande Mirella Pascual) com seu patrão Jacobo (Andrés Pazos), do lanche servido à mesa de trabalho, passando por chegar sempre antes de seu horário, até a proatividade de perceber a necessidade de um conserto de persianas e, sem aguardar o pedido, já requisitar o serviço técnico.
Os dois solitários e de poucas palavras, não somos informados sobre possíveis razões, o roteiro insinua desencanto romântico prévio e, no caso de Jacobo, anos dedicados à cuidar da mãe doente, mas nunca revela, os rostos fechados convidam o espectador a tentar decifrar as almas. A diferença considerável de altura entre os dois é utilizada simbolicamente na narrativa, com alguns cortes nos enquadramentos ressaltando o incômodo da situação, como se eles não se sentissem confortáveis em seus próprios corpos, em suas vidas. O homem evita até responder os olhares dela, a sua amargura o impede de mudar. O elogio de uma colega, após ter o cabelo trabalhado para a farsa do casamento, desabrocha em Marta o primeiro sorriso, ainda que discreto. Na adaptação improvisada dos dois, a eventual entrada do irmão dele, Herman (Jorge Bolani), representa o caos, a espontaneidade libertária.
Herman preenche a lacuna naquela farsa, dando atenção à Marta, demonstrando interesse sincero, através de interações com ele, temos a chance de conhecer melhor aquela fascinante figura introvertida. Uma simplória brincadeira dela com palavras, detalhe aparentemente bobo que o irmão percebe e encoraja, dá cor e sabor à ela, passamos a sentir sua falta quando não está em cena, e, principalmente, ELA começa a ver que precisa tomar atitudes para que as coisas mudem, precisa passar a se enxergar com carinho no espelho da vida.
O Whisky do título é a palavra banal utilizada para garantir o sorriso bonito na curta duração necessária para o registro fotográfico, o leitmotiv da mentira, como a aliança frouxa da falecida mãe de Jacobo, que cai do dedo da mulher, a máscara que precisamos utilizar para encarar o mundo quando, por dentro, desejamos apenas a escuridão.
A despedida padrão da mulher, “até amanhã, se Deus quiser”, toma contornos filosoficamente profundos no sóbrio desfecho. A solidão é, de fato, uma opção com consequências surpreendentes. Jacobo finalmente entende que está desprotegido em seu vazio existencial.
Cotação:
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