Críticas

Crítica de “Uma Vida Oculta”, de Terrence Malick

Uma Vida Oculta (A Hidden Life – 2019)

Baseado em uma história real. O camponês austríaco Franz Jägerstätter (August Diehl) é forçado a abandonar a vida calma no vilarejo alpino com sua esposa, Fani (Valerie Pachner), e enfrenta a ameaça de execução quando se recusa a lutar pelos alemães durante a Segunda Guerra Mundial.

Eu fui uma das poucas vozes na crítica profissional brasileira a ter coragem de falar abertamente que “A Árvore da Vida” (2011) era um tédio insuportável, exercício autoindulgente, indesculpavelmente ingênuo em suas ideias, em suma, uma grande bobagem pedante. Algum tempo depois, os próprios atores envolvidos na produção começaram a debochar da obra, que até hoje considero o sonífero mais eficiente no mercado.

O roteirista/diretor Terrence Malick errou novamente a mão em seus filmes seguintes, “Amor Pleno” (2012), “Cavaleiro de Copas” (2015) e “De Canção em Canção” (2017), até meus colegas mais inseguros intelectualmente não conseguiram sustentar argumentos nas suas nuvens argumentativas para celebrar estas bombas.

O realizador que outrora encantou o mundo com “Terra de Ninguém” (1973), “Cinzas no Paraíso” (1978) e “Além da Linha Vermelha” (1998) havia se perdido em “O Novo Mundo” (2005), escravo de sua própria assinatura visual e narrativa, mas, assim como nas páginas bíblicas que o próprio venera, “Uma Vida Oculta” carrega a redenção artística improvável, simplesmente o melhor trabalho de sua carreira.

“É melhor sofrer injustiça do que praticá-la.” (pensamento socrático repetido pelo protagonista, que representa o leitmotiv da obra)

Ao contrário de suas tentativas anteriores, a estética contemplativa desta feita casa lindamente com a proposta, forma e conteúdo se abraçam carinhosamente, o recurso de desenvolver um recorte específico alicerçado em uma história real foi uma bem-vinda limitação, as longas três horas de duração potencializam a conexão emocional, já que há linearidade na progressão de imagens.

A espiritualidade, tão presente em sua filmografia, encontra porto seguro no drama vivido pelo casal, as narrações tendo Deus como interlocutor frequente fazem sentido, Franz devota sua vida à religiosidade, intensamente católico, o seu sacrifício é apresentado como uma alegoria consciente, as imagens no terceiro ato remetem diretamente ao sofrimento de Cristo.

Fortalecido internamente por seu senso de justiça, ele se recusa a prestar juramento à Hitler, abdicando de tudo o que mais ama, a sua mulher, as filhas e sua rotina tranquila, confrontando seu incrédulo advogado e até o padre de seu vilarejo. A esposa, atuação impecável de Valerie Pachner, abandonada com as filhas e sua solitária irmã, forçada a manter o ritmo pesado de produtividade no campo, sofre também com a reação hostil de seus vizinhos, indignados com a postura pacifista do marido.

O roteiro faz questão de repetir a realidade dura, personagens tentam enfraquecer Franz em várias situações, defendendo que ninguém se importa com a sua atitude, que não muda nada no contexto do conflito, que sua dor será ignorada pelo mundo. A escolha de iniciar mostrando cenas do documentário “O Triunfo da Vontade”, de Leni Riefenstahl, evidencia a mensagem mais importante, “Uma Vida Oculta” é, acima de tudo, a celebração da integridade de um homem simples contra a máquina de propaganda alemã.

Malick, emoldurado pela trilha sonora de James Newton Howard, somada à peças clássicas de Bach e Händel, entre outros, reforça sensorialmente nestes momentos o contraste imagético entre o idílico espaço aberto verdejante e o confinamento sujo, questionando o conceito elástico da liberdade (tema recorrente em seus filmes). O oficial alemão, vivido pelo saudoso Bruno Ganz, não é mais livre que o prisioneiro que julga, forçado a seguir os códigos de conduta militares.

Franz, apesar de fisicamente contido pelas dimensões claustrofóbicas de sua escura alcova, voa alto na paz inestimável de sua consciência.

Cotação:

Octavio Caruso

Viva você também este sonho...

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