Estou Pensando em Acabar com Tudo (I’m Thinking of Ending Things – 2020)
Uma jovem, Lucy (Jessie Buckley), vai com o namorado, Jake (Jesse Plemons), conhecer os pais dele (Toni Collette e David Thewlis) em uma fazenda remota e embarca em uma viagem para dentro de seu próprio psiquismo.
No início, a câmera passeia pelo ambiente e mostra a pintura do alemão Caspar David Friedrich, “Caminhante sobre o Mar de Névoa”, emoldurada na parede da casa. Um detalhe que pode passar despercebido, mas que evidencia o leitmotiv, o olhar romântico sobre o futuro desconhecido.
“A mudança requer energia, determinação…”
O roteirista/diretor Charlie Kaufman, mente brilhante por trás de pérolas como “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”, “Adaptação” e “Quero Ser John Malkovich”, adapta livremente o livro homônimo do canadense Iain Reid, que pretendo ler o mais rápido possível, raros são os projetos atuais que causam esta sensação.
O falatório intenso nos primeiros 20 minutos, durante a longa viagem de carro, já servirá para afastar uma parte expressiva do público imediatista, aquele que busca raso entretenimento, parece até que foi pensada com este propósito, Kaufman jamais subestima a inteligência de seu público, ele não faz concessões mercadológicas.
A fotografia do polonês Łukasz Żal utiliza o enquadramento Academy Ratio (“quadrado”, que encaixava perfeitamente nas televisões antigas) para enfatizar a claustrofobia existencial. A atmosfera inicial de suspense, até com toques de terror, conduz a trama sem pressa em sua proposta psicologicamente labiríntica, que convida o espectador à autorreflexão.
“É uma fantasia exclusivamente humana ter esperança…”
Na intenção de ilustrar o papel da arte na vida, ele utiliza metalinguagem ironizando o estilo melodramático pueril (e puramente comercial) do diretor Robert Zemeckis, inserindo um trecho farsesco de um filme sobre uma garçonete vegana que perde o emprego por causa do excesso de sinceridade de seu namorado. A confusão se resolve, claro, com uma simples declaração de amor, a ilusão escapista proporcionada pelos finais felizes hollywoodianos.
Várias referências diretas de filmes e bastidores da indústria, incluindo discussões profundas sobre simbologia de cenas em momentos improváveis, ecoando a exposição de um livro da saudosa crítica de cinema Pauline Kael (logo, mais que apreço, um interesse apaixonado pelo tema) no “quarto da infância”, situações que rimam sutilmente, dicas que o diretor deixa pelo caminho sobre a natureza transcendental e alegórica da obra.
Lucy, por várias vezes, atua como a voz da moderna sociedade vitimista, frágil, entrando em conflito com Jake, problematizando até mesmo o contexto da clássica canção “Baby, It’s Cold Outside”, representando como que uma resposta à tentativa desajeitada do rapaz em se adaptar àquele mundo. O enigma vai se tornando cada vez mais denso.
Os próximos parágrafos contém spoilers, recomendo que sejam lidos após a sessão.
O protagonista, o zelador da escola, no crepúsculo da vida, enfrentando a natural degradação física e mental, luta para ressignificar experiências traumáticas em seu passado, resgatando paixões (Lucy é um amálgama das mulheres que amou), angústias profissionais, filosóficas, pessoais e encarando seu turbulento relacionamento com os falecidos pais, elementos apresentados pelo roteiro como um fluxo contínuo de tempo e espaço.
Ao espiarmos o quarto de sua infância, com uma extensa coleção de filmes, discos e livros, entendemos porque ele utiliza a teatralidade, a arte, como ferramenta de libertação no lindo desfecho, em que, finalmente, faz as pazes com a inescapável finitude. É como se ele recebesse ajuda da arte, combustível que tornou sua vida inteira mais divertida, aliviando as angústias naturais que todos compartilhamos, para ganhar a coragem necessária e atravessar de cabeça erguida a fronteira final.
O onírico discurso, emulando ipsis litteris a sequência mais lembrada do filme “Uma Mente Brilhante” (o DVD do filme aparece antes no quarto dele, reforçando a identificação que sente com a trama sobre o matemático esquizofrênico), após seu falecimento no veículo, solitário e afastado de tudo, a catarse emocional que escolhe como despedida digna. Bravo!
Um dos melhores e mais instigantes filmes do ano, feito para ser revisto várias vezes, um verdadeiro tesouro direcionado para pessoas sensíveis e inteligentes.
Cotação:
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