Críticas

“Guerra e Paz” (1966), de Sergei Bondarchuk

Guerra e Paz (Voyna i Mir – 1966)

Considerada a mais fiel adaptação cinematográfica do clássico de Liev Tolstói. Vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro (1968), do Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro (1969), e do Grande Prêmio do 4º Festival Internacional de Cinema de Moscou (1965).

A maneira mais confortável de se escrever sobre esta obra é preencher parágrafos prolixos com elogios escalafobéticos, aquele eruditismo pedante que revela tremenda insegurança intelectual, muitos colegas da área já cumpriram bem esta tarefa, assim como, provavelmente, afirmaram várias vezes em rodas boêmias que o livro é maravilhoso, ainda que, posso apostar com tranquilidade, jamais tenham lido.

Não preciso me apoiar em muletas óbvias de autoafirmação cultural, eu realmente amo ler desde criança, logo, reconheço a tremenda importância das mais de mil páginas trabalhadas por Tolstói, demorei longos dois anos na minha adolescência para terminar, tomos que peguei emprestados da biblioteca pessoal do meu saudoso avô materno, e, garanto, há momentos na trama que jamais esqueci, leitura obrigatória na formação existencial/filosófica de qualquer indivíduo, mas definitivamente não colocaria em uma lista pessoal de melhores experiências literárias.

A monumental adaptação russa comandada por Sergei Bondarchuk (que também protagoniza, vivendo Pierre Bezukhov) com suas impressionantes 7 horas de duração, claro, está longe de ser uma experiência cinematográfica positivamente inesquecível, muito pelo contrário, com exceção das partes 3 e 4, mais focadas na ação dos conflitos, peca pelo melodrama inescapavelmente arrastado, folhetinesco, conduzindo o espectador mais atento à compreensível confusão mental diante de tantos personagens e subtramas, elemento presente nos melhores soníferos audiovisuais.

Cinema é uma linguagem primordialmente visual, menos é sempre mais, enxugar é mais eficiente que entediar, questão básica de empatia, a estrutura paquidérmica seria melhor aproveitada como uma série em capítulos, e, de fato, recomendo que a obra seja vista desta forma, com pausas para (tentar) digerir emocionalmente os eventos. Dito isto, vale ressaltar que foi um esforço hercúleo do diretor, que, durante a produção que tomou 5 anos, sobreviveu depois de sofrer dois ataques cardíacos.

Um detalhe curioso que diz muito sobre o caráter do profissional, após conseguir como ator por anos se esquivar corajosamente da “companheirada” da esquerda em seu país, logo depois de ganhar o Oscar e a notoriedade internacional como diretor (ele tinha no currículo apenas a pérola “O Destino de Um Homem”, de 1959), ele foi agressivamente intimidado pelas autoridades soviéticas, lideradas por Leonid Brezhnev, e forçado a se juntar ao partido comunista, consciente de que era uma oferta irrecusável (entende?) caso pretendesse seguir atuando na carreira artística. O socialismo destruiu a alma criativa de Bondarchuk, controlando firmemente suas escolhas posteriores, até que, finalmente, décadas depois, com a liberalização, ele se tornou um símbolo do conservadorismo no cinema soviético.

O mérito inegável de “Guerra e Paz” está na forma, mais do que na substância, a utilização de helicópteros e aviões militares para as tomadas aéreas nas realistas sequências de batalha são verdadeiramente deslumbrantes, agregando simbolismo e lirismo intimistas ao escopo gigantesco de enquadramentos que evidenciam milhares de figurantes em locações reais, trajados impecavelmente com extrema fidelidade à época.

A câmera opera quase como um personagem até nas cenas mais comuns, abusando de filtros oníricos, expressando sentimento, agindo de forma furtiva ou incisiva, poeticamente interpretando as profundas transformações internas dos seres que observa, e, neste processo, ajudando o espectador a viver o mesmo estado psicológico deles. O design de produção, potencializando a imersão do público, fez uso generoso de objetos de cena colhidos de museus, dos pisos dos palácios às pratarias, luxo que grita autenticidade em cada momento.

O filme ficou esquecido por muitos anos, apedrejado por colegas invejosos do diretor, mas hoje é visto com justiça como um marco inestimável na história do cinema, um feito literalmente grandioso que jamais será repetido.

* O filme acaba de ser lançado em Blu-ray e pode ser adquirido AQUI.

Octavio Caruso

Viva você também este sonho...

Recent Posts

PÉROLAS que ACABAM de entrar na AMAZON PRIME

Eu facilitei o seu garimpo cultural, selecionando os melhores filmes dentre aqueles títulos que entraram…

1 dia ago

ÓTIMOS filmes que ACABAM de entrar na NETFLIX

Eu facilitei o seu garimpo cultural, selecionando os melhores filmes dentre aqueles títulos que entraram…

1 dia ago

Dica do DTC – “Shitô No Densetsu”, de Keisuke Kinoshita

No “Dica do DTC”, a nova seção do “Devo Tudo ao Cinema”, a intenção não…

1 semana ago

ÓTIMOS filmes que ACABAM de entrar na AMAZON PRIME

Eu facilitei o seu garimpo cultural, selecionando os melhores filmes dentre aqueles títulos que entraram…

1 semana ago

Crítica nostálgica da clássica série “Taxi” (1978-1983)

Taxi (1978-1983) O cotidiano dos funcionários da Sunshine Cab Company, uma cooperativa de táxi em…

1 semana ago

PÉROLAS que ACABAM de entrar na NETFLIX

Eu facilitei o seu garimpo cultural, selecionando os melhores filmes dentre aqueles títulos que entraram…

2 semanas ago