Era Uma Vez Um Sonho (Hillbilly Elegy – 2020)
De volta à sua cidade natal devido a uma emergência, um estudante de direito, J.D. Vance (Gabriel Basso), reflete sobre a história da família e o próprio futuro.
Se você leu a obra original autobiográfica de J.D. Vance, talvez se irrite um pouco com o roteiro de Vanessa Taylor, de “A Forma da Água”, que descarta a sutileza e aposta generosamente no melodrama, mas é uma opção consciente e compreensível, a proposta do filme é intensamente emotiva, não há interesse algum em aprofundar discussões sobre questões sociais, resumindo, “Era Uma Vez Um Sonho” é Ron Howard trabalhando competentemente na sua zona criativa de conforto.
Infelizmente, muitos colegas críticos norte-americanos e até alguns brasileiros estão apedrejando o resultado de forma injusta, motivados por militância política, atitude patética de amadores, desrespeitando o público, a equipe técnica envolvida no projeto e a própria arte. Talvez porque eles, assim como os seres repugnantes da trama, enxergam a pobreza apenas como potencial massa de manobra, posam publicamente como defensores de minorias, enquanto que, nos bastidores, reduzem elas à estereótipos e desprezam solenemente suas peculiaridades, crenças e tradições.
Já nos primeiros 20 minutos, o roteiro utiliza como alívio cômico a vergonha que o jovem protagonista sente ao não saber como lidar com os tipos de vinhos e os vários garfos dispostos na mesa elegante de acadêmicos de Yale e seus vários bajuladores, mas também evidencia um detalhe importante, ele é o único que agradece quando o garçom se aproxima, os outros fingem que o profissional nem existe, ressaltando o contraste entre a educação genuína, empatia sincera (característica de sua origem humilde), e a adoção de rituais artificiais e vazios visando a oportunista aceitação de outrem.
Assim que ele começa a contar sobre sua família caipira, a mastigação se torna a fuga mais rápida para os presentes, os olhares se perdem no horizonte, o interesse é brutalmente eliminado da equação, substituído pela curiosidade debochada (“você deve se sentir de outro planeta”), algo que obviamente ofende o rapaz. É uma cena breve e aparentemente simples, mas fundamental, que estabelece o caráter firme do personagem.
O elenco é afinado, mas o todo ganha pontos consideráveis pelo brilhantismo na entrega de Amy Adams e Glenn Close, com menção honrosa para Owen Asztalos, que vive J.D. na infância. Não há momentos gratuitos, apelativos, visando premiações, cada situação é pensada como forma de avançar a narrativa e enriquecer o entendimento daquela realidade, como na cena em que, logo após o falecimento do avô, a avó (Close) explica para o neto o gesto dos moradores da cidade à passagem do veículo: “Nós somos gente do interior, querido, nós respeitamos os nossos mortos”.
Howard poderia estender a situação, extrair emocionalmente o máximo, mas inteligentemente ele opta por focar no olhar orgulhoso da senhora, propondo contraste com o sorriso deslocado da filha (Adams), a dignidade cansada dividindo espaço com a desorientação potencializada por psicotrópicos.
A estrutura sem linearidade facilita a imersão do público, que é levado a ser impactado com as revelações em flashback do segundo ato junto com o protagonista. Acho válido também destacar uma rima visual sutil muito bonita envolvendo a mão estendida da mãe na direção do filho, sempre simbolizando pedidos desesperados internos por socorro, até mesmo quando ocorre em uma situação aparentemente tranquila, como na manhã em que ela, sorridente, avisa sua família sobre seu casamento.
A bonita obra ensina que o perdão, e, por conseguinte, a tentativa de compreender as motivações do indivíduo, é mais poderoso que a defesa apaixonada, por vezes cega, com a melhor das intenções.
Cotação:
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