É uma pena que a garotada cinéfila de hoje não preste dedicada atenção ao cinema brasileiro produzido nas décadas de 70 e 80, infelizmente o período foi reduzido (com apoio da imprensa preguiçosa) às pornochanchadas, o desinteresse deste público em garimpar as pérolas, aliado ao descaso grosseiro dos órgãos competentes com a preservação das obras, prejudica até mesmo o trabalho de quem tenta celebrar estes artistas. Não é fácil encontrar na internet fotos das produções, stills, cartazes, tive que printar da tela as cenas (e melhorar a imagem) para inserir nesta postagem.
Os filmes então, triste realidade, quando estão disponíveis (de forma clandestina), o estado da imagem e do som é quase sempre precário, a Cinemateca Brasileira consegue o feito de transformar em raridade um sucesso popular da década de 70 (nem vou mencionar os clássicos da Vera Cruz, Cinédia, Atlântida…), enquanto você encontra no mercado versões em altíssima qualidade, em DVD e Blu-ray, de fitas obscuras estrangeiras da época do cinema mudo.
Já que é impossível encontrar este material, não foram lançados em mídia física, não estão nas plataformas de streaming, não passam na TV fechada, logo, os fãs brasileiros, colecionadores, sem patrocínio, conseguem por vezes salvar estas obras, até remasterizando som e imagem, apresentando elas para um público novo na internet. Pirataria? Não enxergo desta forma negativa, pirata é quem lucra muito sem entregar um resultado minimamente aceitável, aplaudo a iniciativa, estes guerreiros entendem a importância de conservar a memória cultural, estão tratando a arte brasileira com seriedade e o devido profissionalismo, pois entendem que ela precisa estar disponível para ser estudada, apreciada, em suma, valorizada.
Desabafo feito, celebro nesta postagem duas produções do saudoso Jece Valadão, um dos nomes mais importantes da história do cinema brasileiro. Eu escolhi “Os Amores da Pantera” e “O Torturador” exatamente porque você pode encontrar facilmente os dois garimpando na internet. E, para enriquecer a postagem, convidei a querida VERA GIMENEZ, estrela destas obras, para uma entrevista exclusiva sobre sua carreira e o legado do Jece.
O – Vera, o que era o cinema na vida do Jece Valadão? E, como produtor e diretor, como era o processo criativo dele na Magnus Filmes?
V – Quando eu conheci o Jece, ele já tinha alguns filmes, ele foi uma pessoa que foi perseguida, ele já tinha feito “Os Cafajestes”, foi o primeiro trabalho dele que vi, passaram algumas cenas na televisão, porque era proibido, eu era menor de idade, fiquei apaixonada por ele, eu pensei: eu quero conhecer esse cara. Jece adorava o que ele fazia, amava o cinema, ele foi um menino pobre, que veio do interior do Rio de Janeiro, depois a família foi transferida para Cachoeiro de Itapemirim, o pai dele era ferroviário. Ele não teve ensino primário, mas eu nunca vi ele escrever uma palavra errada, ele era extremamente inteligente, sagaz, e amava o trabalho dele.
Infelizmente, ele não recebe o reconhecimento que merece, ele fez mais de 100 filmes, produziu muito, inclusive durante o período complicado da década de 70, em que era difícil realizar bons filmes, pois estávamos sob a égide militar, que foi muito boa porque tirou o nosso país do comunismo, mas criou também algumas cabeças completamente quadradas. O Jece tinha um grande amigo coronel que adorava cinema e frequentava a Fiorentina (restaurante), ficou meu amigo também, ele era o braço direito do João Figueiredo, que, por sinal, era muito engraçado e muito liberal, eu continuo querendo muito bem aos filhos dele, o neto, que hoje é jornalista, Paulo Figueiredo, mas a maioria era gente muito quadrada.
O – Gosto bastante de sua participação em “Os Amores da Pantera”. Como você encarou a proposta desde o roteiro do José Louzeiro e do Milton Alencar? Como foi sua imersão no papel?
V – Olha, eu já li muito sobre a Ângela (Diniz), aliás, hoje em dia leio até mais sobre ela, tem um podcast no spotify sobre o caso que é muito interessante. Só que eu não gostei muito do roteiro do José Louzeiro, embora eu gostasse muito dele e do Milton, mas não aceitei muito bem, achei estranho, mas tem muita coisa envolvida sim, muito tráfico. Na época, eu era muito jovem, não tinha nem 30 anos, ela era mais velha quando faleceu, uma mulher livre, que não dançava conforme a música da época, isso criava alguns problemas sérios com os companheiros.
Ibrahim Sued quase matou ela, deu um tiro, pegou no batente da porta, todo mundo soube no RJ. Eu acho que foi uma baita crise de ciúmes dele, misturada com “cheiração”, a droga tira a pessoa do equilíbrio, do centro, e eu, para me preparar para a personagem, comecei a beber muito (eu não bebo, já faz 1 ano que não boto uma gota de álcool na boca), comecei a tomar vodka, que era a bebia predileta dela, passei alguns meses tomando vodka, meio que tentando entender o universo em que ela vivia.
Filmar “Os Amores da Pantera” foi bom, eu contracenei com o Reinaldo Gonzaga, uma pessoa maravilhosa, e tinha o (Paulo César) Pereio também, fantástico, a equipe era muito unida, sentava todo mundo junto, comia todo mundo junto, o Jece era uma pessoa muito calma para dirigir, não gritava, não tinha ataque de estrelismo, ele era muito tranquilo, então a experiência foi muito boa.
O – Qual o seu trabalho favorito no cinema?
V – Caruso, o meu favorito é “A Noite dos Assassinos” (1976), passado em duas épocas, foi durante as filmagens deste que sofri um acidente de carro voltando da Cinédia. [O – Este é um dos exemplos que citei no início da postagem, um filme impossível de encontrar] Outro que gostei muito, que não recebeu o destaque merecido, é “O Torturador” (1981), dirigido pelo Antônio Calmon, com o Ary Fontoura, que vivia um ditador de uma republiqueta, eu vivia a amante dele, tinha o Jece, Otávio Augusto, eu ADORO esse filme, infelizmente foi mal interpretado à época, ele poderia ter feito um sucesso absurdo e não fez, este foi também o último que fiz com o Jece, quatro anos depois eu me separei dele.
O – Nós vivemos um momento sombrio em que a agenda progressista dita as regras e cala vozes contrárias, filmes como “Os Amores da Pantera”, “Eu Matei Lúcio Flávio” e boa parte dos trabalhos do Jece dificilmente conseguiriam ser produzidos hoje, o bandido agora é tratado como vítima, os bons valores são demonizados. Os textos modernos da imprensa sobre estes filmes chegam a citar em ar de deboche a “inclinação moralista” como algo ruim. Não há mais pessoas corajosas como o Jece na indústria cinematográfica brasileira. Como você enxerga esta questão?
V – O Jece era de direita, talvez por isso ele tenha sofrido tantas sanções dos esquerdistas bajuladores que viviam nessa época aqui no Brasil, embora ele tenha feito “Mineirinho, Vivo ou Morto”, “Rio 40 Graus”, entre outros, ele começou junto com o pessoal todo, só que o Jece tomou outro rumo. Ele é até hoje muito mal estudado, um produtor com mais de 100 filmes, uma loucura.
Ele tinha uma persona pública de cafajeste, agressivo, mas era tudo mentira, um personagem, o cara não falava palavrão, não gritava, eu mesma era muito pior, ele era extremamente educado, muito charmoso, de origem humilde, a mãe era analfabeta, o pai semianalfabeto. A única coisa que ele fazia de errado era a galinhagem total, mas, sim, ele não foi aplaudido profissionalmente como merecia nas últimas décadas porque era de direita, esta é a verdade.
Os Amores da Pantera (1977)
Durante uma festa promovida por milionários, mulher é sequestrada e eliminada misteriosamente. O crime resulta num rumoroso caso policial, cujas investigações apontam para um playboy viciado em psicotrópicos.
Há ideias sensacionais, como utilizar um escandaloso caso real recente na memória do público como alegoria para criticar os rituais vazios da alta sociedade, ou a opção estética de transmitir sensorialmente ao público, utilizando criativamente o vermelho na iluminação e sobreposições de imagens, a descida ao inferno alucinógeno do grupo, misturando o prazer real da coreografia de belos corpos com rostos zumbificados intimidando o espectador, a produção da Magnus Filmes é superior aos vários tematicamente similares (inspirados em ocorrências policiais reais) lançados no período, como “O Caso Cláudia”, “Paranoia”, “Ódio” e “O Sequestro”, o filme tem pegada orgânica e personalidade própria, não demonstra a insegurança típica de quem está apenas parasitando as convenções de um gênero.
O Torturador (1981)
Capitão Jonas e Chuchu são contratados por judeus para eliminar um nazista conhecido como El Torturador que trabalha para um ditador político. Os dois homens acabam encontrando em seu adversário um verdadeiro algoz.
Nesta deliciosa brincadeira com o gênero policial, lotada de referências, a belíssima Vera Gimenez vive Gilda, referência direta às femme fatales do Noir, emulando inclusive os trejeitos de Rita Hayworth, Anselmo Vasconcellos vive um mafioso que se disfarça de padre, Ary Fontoura vive o ditador de uma republiqueta e, claro, Jece Valadão e Otávio Augusto, dando show de carisma como uma dupla de mercenários.
Já nas primeiras cenas, somos apresentados aos dois com Chuchu (Augusto, o Gene Hackman brasileiro) tentando desencorajar o colega de (aparentemente) acabar com a própria vida cantando “Amigo”, de Roberto e Erasmo, dando o tom farsesco desta pérola dirigida por Antônio Calmon. Os diálogos são verdadeiramente hilários, quando você menos espera, Jece, brincando com a própria persona artística, solta: “Nasci pelado, tô vestido, tô no lucro”, “Eu só vou dar o tiro mermão, quem tira vida é Deus!”, e, talvez o mais espirituoso, “Abaixo o nazismo e viva o Mengo!”
Nos momentos mais violentos, elemento fundamental no gênero, a fita não decepciona, um espetáculo de gore para ninguém botar defeito. Filme divertidíssimo que merece ser redescoberto.
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