Críticas

Crítica de “Liga da Justiça”, o corte de Zack Snyder

Liga da Justiça de Zack Snyder (Zack Snyder’s Justice League – 2021)

Bruce Wayne (Ben Affleck), determinado a garantir que o sacrifício do Superman (Henry Cavill) não tenha sido em vão, junta forças com Diana Prince (Gal Gadot) com planos de recrutar uma equipe de meta-humanos para proteger o mundo de uma ameaça de proporções catastróficas que se aproxima da Terra.

É fundamental contextualizar a obra, já que muitos não acompanharam o caso. O projeto foi pensado para competir nas bilheterias em 2015 com o segundo filme dos Vingadores, o roteiro de Chris Terrio foi finalizado em julho do mesmo ano, alguns membros do elenco começaram a aquecer as turbinas de divulgação, postando fotos e estimulando a imaginação dos fãs.

A pré-produção oficialmente começou em janeiro de 2016. Willem Dafoe, por exemplo, estava escalado para um papel relacionado ao universo de Aquaman, o escopo seria grandioso como em “Batman Vs. Superman”, com várias subtramas e generoso tempo dedicado à cada herói, mas com o diferencial de que seria dividido em duas partes. Muitos jovens se empolgaram com o primeiro pôster divulgado, mostrando pela primeira vez o visual de Cyborg e Flash. Pouco tempo depois, os problemas começaram.

O conceito realista sombrio que o diretor Zack Snyder estabeleceu em “O Homem de Aço”, de 2013, e aprofundou na sequência, já estava se tornando alvo de deboche na internet, a garotada estava sensorialmente acostumada com as produções infanto-juvenis da Marvel, tramas sem peso dramático, vilões sem senso real de ameaça, sequências de ação diluídas e palatáveis até para crianças de cinco anos. A fórmula da concorrência seguia lucrando alto, os tempos mudaram radicalmente, logo, o primeiro passo foi garantir que “Esquadrão Suicida” e “Mulher-Maravilha” emulassem aquele espírito descontraído, despretensioso.

O redirecionamento criativo era arriscado, os produtores precisavam manter a ideia de que o universo criado estava sendo respeitado. “Esquadrão Suicida”, uma péssima colcha de retalhos, reeditado diversas vezes, fracasso retumbante. O trailer vendia A, o filme entregava C. A pressão estava nos ombros da heroína mais famosa dos quadrinhos. Gal Gadot, com carisma irresistível, fez o público esquecer os problemas no fraco terceiro ato de “Mulher-Maravilha”, o filme exalava leveza e alegria, por conseguinte, sucesso nas bilheterias. Alerta vermelho na produção de “Liga da Justiça”, algo precisava ser feito, havia luz no fim do túnel.

Os fãs então começaram a receber notícias de cortes, rumores apontavam que a duração total do filme seria de três horas, aquilo que havia sido pensado em duas partes estava sendo retrabalhado na base do “tudo ou nada”, não há lógica em correr risco duas vezes. Algumas subtramas seriam drasticamente reduzidas, outras cortadas completamente, o personagem de Willem Dafoe deixou de existir, apesar de constar nas linhas de brinquedos que já estavam sendo trabalhadas.

Os produtores estavam muito preocupados e com razão, caos e insegurança não ajudam a vender ingressos. O sonho de todo fã havia se tornado um pesadelo. Já na etapa final, um baque devastador, a filha adolescente do diretor comete suicídio. Ele se afasta da produção e Joss Whedon, responsável pelo maior sucesso da concorrência, é convocado às pressas para finalizar a obra.

Ao constatar que a situação não era mercadologicamente simpática aos olhos dos executivos, ele aceita a responsabilidade de reescrever o material, acatando o pedido dos engravatados angustiados para que a duração total não ultrapassasse o limite de duas horas. Henry Cavill, que já estava filmando outro projeto, foi chamado para refilmagens importantes. Ao contrário dos outros colegas, ele trazia um considerável problema, o bigode que contratualmente não poderia ser cortado.

O pessoal do marketing estava desesperado, então o jeito era fazer piadas com o fato, o ator ajudou a vender a ideia do Superman bigodudo nas redes sociais, uma tentativa desajeitada de acalmar os fãs. Os pelos seriam digitalmente retirados, logo no rosto do líder da equipe, o personagem mais importante da história dos quadrinhos. O papo entre os críticos agora se resumia a conjecturar a dimensão do estrago que o filme causaria. Os pessimistas apostavam que seria uma bomba mais poderosa que “Esquadrão Suicida”, os otimistas torciam para que não fosse cancelado, em suma, a situação não era boa.

Os novos trailers mostravam mudanças radicais, correção de cores, piadas e sorrisos, o esforço conduzia para o senso de diversão inofensiva da Marvel. Semanas antes, “Thor: Ragnarok” estreava exibindo humor tolo, exagerando em todos os aspectos, o desgaste da fórmula que transformou o espetacular dos primeiros esforços em previsível bobeira direcionada para crianças e adultos infantilizados. O “Liga da Justiça” de Whedon infelizmente havia optado por este caminho.

O resultado foi compreensivelmente apático, sem personalidade, sem pegada, uma colcha de retalhos medianamente divertida. Os fãs no mundo todo então começaram uma campanha virtual para que o corte original de Zack Snyder fosse lançado, algo que parecia altamente improvável à época, esforço tido por muitos, inclusive na imprensa, como uma piada patética. A simples existência deste “Snyder Cut” é uma vitória da força criativa autoral contra a mente limitada dos executivos que só pensam no lucro imediatista. E o fato do diretor manter o desfecho em aberto original, com um gancho espetacular, reforça ainda mais a sua coragem enquanto profissional da indústria, já que ele “dobra a aposta”, consciente de que os fãs vão lutar para que uma sequência receba sinal verde.

O primeiro ponto essencial que precisa ser destacado é que, em comparação com o filme bobinho lançado em 2017, “Liga da Justiça de Zack Snyder” é uma aventura épica pensada para adultos, que aborda temas complexos, como sacrifício, pais e filhos, processo de luto e culpa, com sequências de ação bastante violentas. O roteiro entende os heróis da DC como mitos modernos, aspecto fascinante, logo, há peso em suas atitudes, eles carregam a responsabilidade do mundo livre nos ombros.

A Mulher-Maravilha, quando não enxerga solução, não pensa duas vezes antes de eliminar brutalmente um terrorista, afinal, ela é uma guerreira que preza pela vida dos inocentes. O jovem Cyborg (Ray Fisher), o personagem mais psicologicamente denso, a alma do filme, luta contra o reflexo metálico no espelho, a trama insere motivações críveis e surpreendentemente emocionantes em seu arco narrativo. O Flash (Ezra Miller), que irritava no original, deixa de ser uma caricatura tola e se torna um necessário alívio cômico, vale ressaltar, com real função na evolução da história.

Aquaman (Jason Momoa) segue sendo o enigmático recluso, as piadinhas foram felizmente extirpadas. E Superman, apesar de não retornar com aquela leveza que remetia ao clássico de Richard Donner, opção que enxertava momentos simpáticos, mas incoerentes em tom com o todo, como o salvamento dos civis no meio da batalha, entrega cenas verdadeiramente empolgantes e que enfatizam porque ele é o maior super-herói de todos os tempos. O potencial de cada personagem é aproveitado ao máximo, o importante senso de camaradagem, elemento que soava bastante forçado no original, garante vários momentos em que a nossa criança interna abre um sorriso de orelha a orelha.

Até mesmo o vilão Lobo da Estepe (Ciarán Hinds), inexpressivo no corte oficial, ganha contornos enriquecedores, além da impressionante melhoria na computação gráfica, o público agora entende a razão por trás de seus atos, não é obviamente uma humanização que convida à empatia, ele é a pura personificação do mal, mas agora sua ameaça não é perceptível apenas em teoria, uma mudança que, por conseguinte, potencializa o impacto dramático do terceiro ato. Há também tempo generoso para que todos os personagens secundários de cada núcleo participem ativamente na construção daquele universo, com destaque para o Alfred, vivido pelo sempre competente Jeremy Irons.

É inacreditável cogitar a hipótese de que o estúdio rejeitou esta versão, até mesmo se não tivessem diluído, escolha mercadológica que seria compreensível, já que as 4 horas passam rápido, a experiência é emocionalmente imersiva. O resultado é tão superior em todos os sentidos, que, sem exagero, já está na seleta lista das melhores adaptações de quadrinhos da história do cinema.

Cotação:

* O filme foi disponibilizado hoje em plataformas de vídeo e operadoras de TV por assinatura. A locação estará disponível até 7 de abril. Após o período, o filme será exclusivo no catálogo do HBO Max. Você já encontra no Youtube, Vivo Play, Google Play e Sky Play, entre outros…

Octavio Caruso

Viva você também este sonho...

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